quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

A INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO


Monografia apresentada ao Departamento de

Pós-graduação de Direito da Universidade Cândido Mendes,

como requisito parcial à obtenção do título

de especialista em Direito do Estado





Aos meus pais, Valter e Lenita,

por terem sempre apoiado os

meus projetos intelectuais,

e pelas lições de vida.

Em memória de meus avós, Dalva e Armínio,

Ângela e Arthur, que agora

brilham entre as estrelas,

minhas saudades...

Agradeço, em primeiro lugar, aos professores de nosso curso: Reis Friede, Pedro Lenza, José dos Santos Carvalho Filho, Jerson Carneiro, Luis Antonio Ribeiro e Maria Cristina Matos, por terem ministrado aulas inesquecíveis. Também agradeço às pessoas da coordenação administrativa de Santos: Margaret, Gicele e Maurício.

Não posso deixar de agradecer à nobre defensora dos Direitos Humanos, Érika de Lima Liberatti, a quem admiro pela constante luta em defesa dos direitos das pessoas humildes.

Por último, mas não menos importante, agradeço ao professor Valério de Oliveira Mazzuoli, pela inspiração, e por ter prontamente atendido ao meu pedido enviando-me precioso material para a elaboração desta monografia.

“Todos os homens nascem livres

e iguais em dignidades e direitos.

São dotados de razão e consciência e

devem agir em relação uns aos outros

com espírito de fraternidade.”

Artigo 1°da Declaração Universal

dos Direitos do Homem


RESUMO

No bojo do presente estudo monográfico, analisar-se-á como os tratados que versam sobre direitos humanos são incorporados no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, num primeiro momento, o autor discorre sobre o conceito de direitos humanos e seu processo de internacionalização, passando pelo exame dos direitos humanos fundamentais inseridos na Constituição Federal de 1988. A seguir, discorre sobre as características básicas dos tratados internacionais e seu processo de formação, para só então entrar no debate doutrinário que envolve o tema, expondo as idéias tanto dos que defendem o status constitucional e aplicação imediata das normas convencionais de direitos humanos, como daqueles que sustentam a paridade dos tratados internacionais com as leis infraconstitucionais, além do posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria. Por fim, avalia a mudança introduzida pela Emenda Constitucional n° 45/04, que erigiu os tratados protetivos da pessoa à categoria de emendas constitucionais, e suas possíveis implicações em nosso ordenamento jurídico.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.. 8

1 A INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.. 12

1.1 Uma breve concepção do que são os direitos humanos. 12

1.1.1 A internacionalização dos direitos humanos. 22

1.1.2 Os direitos humanos na Constituição de 1988. 29

1.2 Os tratados internacionais. 38

1.2.1 Processo de formação dos tratados internacionais. 41

1.2.2 O ingresso dos tratados no ordenamento jurídico interno: teorias em confronto. 47

1.3 Os tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. 52

1.3.1 As posições doutrinárias. 56

1.3.1.1 A doutrina que defende o status de norma constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. 56

1.3.1.2 A doutrina que sustenta a paridade normativa entre os tratados internacionais e as leis ordinárias. 66

1.3.1.3 O posicionamento do Supremo Tribunal Federal 72

1.4 Os tratados internacionais de direitos humanos diante da Emenda Constitucional n° 45/04. 82

1.4.1 A aplicação da regra prevista no § 3° do art. 5° para os tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente à EC n° 45/04. 84

1.4.2 Qual é o momento da manifestação do Congresso Nacional nos termos do § 3° do art. 5° da Constituição Federal?. 86

1.4.3 Possíveis interpretações da inovação constitucional 87

CONCLUSÕES. 93

REFERÊNCIAS. 98

INTRODUÇÃO

A presente monografia tem por objetivo proceder a uma análise sobre a incorporação das normas provenientes de tratados internacionais que versam sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, verificando, a partir de posições doutrinárias e do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, qual hierarquia essas normas têm ao ingressar em nosso Direito interno.

A importância do tema pode ser verificada pela diversidade de disciplinas que abordam a questão dos direitos humanos ou direitos fundamentais: o direito constitucional, o direito internacional, a teoria geral do Estado e a filosofia do direito. Inegavelmente com a internacionalização dos direitos humanos, a partir da Declaração dos Direitos do Homem de 1948 e da adoção de seus principais preceitos pelas cartas constitucionais de diversas nações, inclusive por nossa Constituição, o direito constitucional e o direito internacional passaram a interagir profundamente, chegando Bonavides (2004, p. 47) a afirmar que “[...] a internacionalização do Direito Constitucional e a constitucionalização do Direito Internacional são suficientemente fortes para inculcar o grau de influência mútua verificada entre as mencionadas disciplinas.”

A matéria objeto desta monografia adentra o campo do Direito Constitucional e do Direito Internacional e, desta forma, para a consecução dos objetivos propostos, analisa-se, primeiramente, o conceito de direitos humanos, sem qualquer pretensão de considerar os aspectos históricos ou filosóficos do assunto. A seguir, abordamos a internacionalização dos direitos humanos, ocorrida após a Segunda Guerra, cujo ápice culminou com a elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, marco da concepção contemporânea de direitos humanos. No exame dos direitos fundamentais do homem previstos na Constituição de 1988, dá-se especial destaque ao princípio da dignidade da pessoa humana, inserido como um dos fundamentos da República (art. 1°, III), cujo objetivo é servir de critério interpretativo das normas do nosso ordenamento jurídico.

No decorrer, passamos ao estudo dos tratados internacionais, fonte principal do direito das gentes, abordando seu conceito e suas características básicas, para entrar no processo de formação dos mesmos, que engloba desde as negociações preliminares até sua ratificação pelo Presidente da República. A conjugação das vontades do Executivo e do Legislativo é condição sine qua non para que o tratado entre em vigor no plano interno. O procedimento parlamentar é analisado como se encontra disposto na Constituição Federal. Finalizamos esta parte com o estudo do relacionamento entre o direito interno e o direito internacional, consubstanciado pelas teorias monista e dualista.

Fixados esses pontos, adentra-se o exame das posições doutrinárias sobre a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos. Nesta parte, investigamos, exaustivamente, o posicionamento dos autores que sustentam o status constitucional e a imediata aplicação dos tratados internacionais em nosso ordenamento jurídico. Entre estes, é unânime o argumento segundo o qual, por força dos §§ 1° e 2° do art. 5° da Constituição Federal, as normas provenientes de tratados ingressam em nosso ordenamento jurídico como normas materialmente constitucionais, e tendo em vista que consagram direitos fundamentais, têm aplicação imediata, a partir da ratificação do tratado.

A seguir analisamos os argumentos daqueles que defendem que os tratados internacionais protetivos da pessoa ingressam no direito pátrio guardando paridade normativa com as leis ordinárias. Estes, por seu turno, argumentam que estes tratados internacionais ingressam em nosso ordenamento jurídico guardando paridade normativa com as leis ordinárias, pois a aprovação dos mesmos, pelo Congresso Nacional, via decreto legislativo, demanda quorum de maioria simples e, desta forma, o ingresso de tais normas com status de constitucionais corresponderia a uma modificação do texto constitucional por procedimento diverso daquele previsto pelo art. 60, § 2° da Constituição.

O entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão também foi examinado, sem, todavia, deixar de observar as posições contrárias de alguns Ministros. Para a Suprema Corte, os tratados não podem transgredir a normatividade da Constituição, e situam-se no nível hierárquico das leis ordinárias.

Por derradeiro, a inclusão do § 3° ao art. 5° através da Emenda Constitucional n° 45/04, que tinha por finalidade sepultar a controvérsia sobre a hierarquia dos tratados internacionais protetivos da pessoa, a contrario sensu, trouxe nova polêmica à questão, havendo vozes na doutrina a afirmar que, a partir da inovação constitucional, passam a haver duas categorias de tratados: os que por força do § 2° do art. 5° são materialmente constitucionais e, os que, caso aprovados segundo as regras do § 3° do art. 5°, serão material e formalmente constitucionais.

Em conclusão, pretende-se demonstrar que, efetivamente, os tratados internacionais de direitos humanos, em virtude de seu caráter especial e diferenciado, merecem especial destaque, e ingressam em nosso ordenamento jurídico com caráter supralegal, porém infraconstitucional.

1 A INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS AO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

1.1 Uma breve concepção do que são os direitos humanos

O conceito de direitos humanos implica uma série de considerações filosóficas, religiosas, legais, sociais, culturais, políticas e econômicas (BARACHO; 1998, p. 92), que fogem ao objetivo deste trabalho. Imprescindível, no entanto, apresentarmos uma noção, ainda que breve, sobre o que se entende por direitos humanos para a melhor compreensão dos objetivos de nosso tema.

Os direitos humanos estão, inegavelmente, ligados aos aspectos mais importantes da vida do ser humano. A idéia central e que fundamenta toda a concepção dos direitos humanos é a dignidade do ser humano. Cumprem eles um desempenho de proteger o ser humano contra o arbítrio do Estado, bem como de assegurar condições mínimas de existência digna.

Nesse aspecto, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 10/12/1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, oferece exemplos de direitos humanos internacionalmente reconhecidos, tais como: o direito à vida, liberdade, igualdade perante a lei, o direito à segurança pessoal, o direito de não ser escravo, nem de ser submetido à tortura ou a tratamento desumano, cruel ou degradante, o direito de não ser arbitrariamente preso, detido ou exilado, o direito uma justa e pública audiência perante um tribunal imparcial, para decidir seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal, o direito de não sofrer interferência arbitrárias da privacidade, na esfera da vida privada, família, lar e correspondência, o direito de não sofrer ataques à honra e reputação, o direito à liberdade de locomoção e residência dentro do Estado, o direito de asilo em outros países quando vítima de perseguição, salvo em caso de crime comum, direito de contrair matrimônio e fundar uma família, considerada esta como o núcleo central e fundamental da sociedade, sendo assegurado o direito à sua proteção pela sociedade e pelo Estado, o direito à propriedade, e o direito de não ser privado arbitrariamente de sua propriedade, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, direito à liberdade de reunião e associação, o direito de tomar parte no governo de seu país, de forma direta ou indireta, o direito de eleger seus representantes, através de eleições periódicas, por sufrágio universal, por voto secreto ou equivalente, o direito ao trabalho e a uma remuneração justa e satisfatória que assegure uma existência compatível com a dignidade humana, direito à livre escolha de emprego, à proteção contra o desemprego, o direito a igual remuneração por igual trabalho, o direito à remuneração, o direito à instrução gratuita orientada ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao fortalecimento do respeito pelos direitos do homem etc.

Ainda que o rol dos direitos previstos na Declaração de 1948 não possa ser considerado taxativo, nela estão compreendidos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos e reproduzidos nas constituições de diversos países.

O conceito de direitos humanos varia de acordo com as teorias que os justificam, resultando, porém, insatisfatório o resultado da adoção de uma teoria, em detrimento das demais.

A teoria jusnaturalista fundamenta os direitos humanos em uma visão metafísica, baseada na existência de uma ordem superior universal (direito divino ou natural) justificando que eles existem antes da criação das leis ou tribunais.

A teoria positivista, diferentemente, fundamenta os direitos humanos na ordem normativa, seja nacional ou internacional, pois só quando previstos em instrumentos legais, passam a ser, efetivamente, exigíveis.

A teoria moralista, por fim, expõe que o fundamento dos direitos humanos encontra guarida na consciência moral de cada povo.

Moraes (1998, p. 35) entende que as referidas teorias se completam e devem coexistir, pois somente com a consciência social de um povo (teoria moralista), baseada na crença em uma ordem superior e natural (teoria jusnaturalista) é que o legislador pode encontrar o fundamento para reconhecer a existência e inclusão dos direitos humanos no ordenamento jurídico (teoria positivista).

Convencionou-se classificar os direitos humanos, a partir de sua institucionalização e do momento histórico em que surgiram, em três gerações ou categorias. Segundo Bonavides (2004, p. 563-569):

Os direitos de primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente. [...]

Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos a pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.

Os direitos da segunda geração merecem um exame mais amplo. Dominam o século XX do mesmo modo como os direitos da primeira geração dominaram o século passado. São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula. […]

De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. […]

Com efeito, até então em quase todos os sistemas jurídicos, prevalecia a noção de que apenas os direitos da liberdade eram de aplicabilidade imediata, ao passo que os direitos sociais tinham aplicabilidade mediata, por via do legislador. […]

A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida. Trata-se daquela que se assenta sobre a fraternidade […]

[...] Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio-ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.

Finalizando, Bonavides (2004, 570-572) menciona, ainda, os direitos fundamentais de quarta geração, nos termos seguintes:

O Brasil está sendo impelido para a utopia deste fim de século: a globalização do neoliberalismo, extraída da globalização econômica. O neoliberalismo cria, porém, mais problemas do que os que intenta resolver. Sua filosofia do poder é negativa e se move, de certa maneira, rumo à dissolução do Estado nacional, afrouxando e debilitando os laços de soberania e, ao mesmo passo, doutrinando uma falsa despolitização da sociedade. […]

Há contudo, outra globalização política, que ora se desenvolve, sobre a qual não tem jurisdição a ideologia neoliberal. Radica-se na teoria dos direitos fundamentais. […]

Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizá-los no campo institucional. Só assim aufere humanização e legitimidade um conceito que, doutro modo, qual vem acontecendo de último, poderá aparelhar unicamente a servidão do porvir. […]

São direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência. […]

Os direitos da quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem – sem, todavia, removê-la – a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos da primeira geração. Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentados em sua dimensão principal, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se com a mais subida eficácia normativa a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico. […]

Enfim, os direitos da quarta geração compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos. Tão-somente com eles será legítima e possível a globalização política.

Adotando essa forma de classificação dos direitos humanos, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o MS nº 22.164/SP, Rel. Min. Celso de Mello, (Diário da Justiça, Seção I, p. 39.206, 17 nov./1995), assim se manifestou:

[...] enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.

Piovesan (2003, p. 36-37) critica a divisão dos direitos humanos em gerações, entendendo que a partir da Declaração de 1948, os direitos humanos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente, inter-relacionada e indivisível, assim, em suas palavras,

[...] partindo-se do critério metodológico, que classifica os direitos humanos em gerações, adota-se o entendimento de que uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta a idéia da sucessão ‘geracional’ de direitos, na medida em que se acolhe a idéia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencialmente complementares e em constante dinâmica de interação. Logo, apresentando os direitos humanos uma unidade indivisível, revela-se esvaziado o direito à liberdade, quando não assegurado o direito à igualdade e, por sua vez, esvaziado revela-se o direito à igualdade, quando não assegurada a liberdade.

Vale dizer, sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais, enquanto que, sem a realização dos direitos civis e políticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos e sociais carecem de verdadeira significação. Não há mais como cogitar da liberdade divorciada da justiça social, como também infrutífero pensar na justiça social divorciada da liberdade. Em suma, todos os direitos humanos constituem um complexo integral, único e indivisível, em que diferentes direitos estão necessariamente inter-relacionados e interdependentes entre si.

A expressão “dimensões de direitos fundamentais” seria preferível ao termo “gerações de direitos”, de acordo com Guerra Filho (2001, p. 39), pois as gerações anteriores não desaparecem com o surgimento das mais recentes. Em sua elucidativa visão,

[...] Mais importante é que os direitos ‘gestados’ em uma geração, quando aparecem em uma ordem jurídica que já traz direitos de geração sucessiva, assumem uma outra dimensão, pois os direitos de geração mais recente tornam-se um pressuposto para entendê-los de forma mais adequada e, conseqüentemente, também para melhor realizá-los. Assim, por exemplo, o direito individual de propriedade, num contexto em que se reconhece a segunda dimensão dos direitos fundamentais só pode ser exercido observando-se sua função social, e com o aparecimento da terceira dimensão, observando-se igualmente sua função ambiental [...]

Desta forma, as críticas às gerações de direitos baseiam-se no fato de que induzem a uma idéia fragmentária: a de que uma geração de direitos sucede a outra, quando, em verdade, devem ser entendidas como interagindo e fundindo-se umas às outras. Em outras palavras, a teoria das gerações de direitos arrasam a visão de que os direitos humanos devem ser considerados universais, indivisíveis e interdependentes.

Direitos humanos são, essencialmente, direitos fundamentais, muito embora as expressões não podem ser consideradas sinônimas.

Ao tratar da matéria, Silva (1999, 179) discorre sobre a dificuldade de elaborar um conceito sintético e preciso do que são os direitos fundamentais do homem, em virtude de sua ampliação e transformação no processo histórico, e tal dificuldade aumenta tendo em vista a pluralidade de expressões para designá-los: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem.

Inclina-se, porém, o citado autor, pela designação direitos fundamentais do homem, pois

[...] além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. (SILVA; 1999, p. 182).

Moraes (1998, p. 39), seguindo a mesma linha, entende que os direitos humanos fundamentais são todos aqueles previstos nas constituições dos países, e que têm como fundamentação a dignidade da pessoa humana. Em sua definição, os direitos humanos fundamentais são “o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.”

Guerra Filho (2001, p. 37) afirma que direitos fundamentais são direitos humanos, ressaltando, no entanto, que embora sejam empregadas como sinônimas, as expressões não se confundem:

:

[...] De um ponto de vista histórico, ou seja, na dimensão empírica, os direitos fundamentais são, originalmente, direitos humanos. Contudo, estabelecendo um corte epistemológico, para estudar sincronicamente os direitos fundamentais, devemos distingui-los, enquanto manifestações positivas do Direito, com aptidão para produção de efeitos no plano jurídico, dos chamados direitos humanos, enquanto pautas ético-políticas, ‘direitos morais’ [...], situados em uma dimensão supra positiva, deonticamente diversa daquela em que se situam as normas jurídicas, especialmente aquelas de Direito Interno [...]

Analisando-se as distinções dos termos direitos humanos e direitos fundamentais, necessário aceitar a lição de Bobbio (2002, p. 30), segundo a qual os “direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais.”

Não é por outro motivo que a Declaração Universal dos Direitos do Homem repete o fundamento do direito natural ao estipular que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, pois

[...] os homens não nascem nem livres nem iguais. São livres e iguais em relação a um nascimento ou natureza ideais, que era precisamente a que tinham em mente os jusnaturalistas quando falavam em estado de natureza. A liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um valor; não são um ser, mas um dever ser. (BOBBIO; 1992, p. 29)

Os direitos humanos podem até encontrar sua justificação no direito natural, ou na consciência moral dos povos, mas somente quando previstos no ordenamento jurídico é que se tornam direitos fundamentais, capazes de serem exigidos e protegidos, pois sem a positivação jurídica são apenas aspirações, esperanças ou ideais, ainda que legítimas.

Desta feita, a concepção de direitos humanos como direitos naturais e anteriores ao direito objetivo deve ser aceita como motivação para a inclusão desses direitos nos múltiplos instrumentos legais visando a sua proteção, mas não pode subsistir diante da constatação de que foi com a sua positivação, tanto por meio da Declaração de 1948, e nos diversos tratados internacionais protetivos da pessoa que a seguiram, como pela sua previsão nas Cartas constitucionais das mais variadas nações, que passaram a ser efetivamente reconhecidos, assegurados e protegidos.

Os direitos humanos, a partir dessa perspectiva, só existem no âmbito de uma ordem jurídica justa, realidade presente apenas em Estados democráticos de direito.

A positivação jurídico-constitucional dos direitos humanos decorre, enfim, da necessidade de lhes imprimir eficácia, pois só o direito positivo é dotado de imperatividade, capaz de vincular a todos, sem exceção.

A importância da consagração dos direitos humanos em instrumentos normativos não passou desapercebida pela Organização das Nações Unidas, e mesmo pela Organização dos Estados Americanos, tendo em vista os inúmeros tratados internacionais assinados no âmbito de atuação dessas duas entidades. No soar destas razões, estudaremos a seguir o processo de internacionalização dos direitos do homem.

1.1.1 A internacionalização dos direitos humanos

Não há qualquer divergência na doutrina de que foi com a Declaração da Virgínia (1776) e, em especial, com a Declaração francesa dos Direitos do Homem, de 1789, que se firmou a concepção universalista dos direitos humanos. A partir de então, determinados direitos, notoriamente aqueles referentes à liberdade e dignidade da pessoa humana, passaram a ser entendidos como incondicionais, inalienáveis e imprescritíveis.

A positivação desses direitos fundamentais nas constituições de diversos Estados decorreu, em um primeiro momento, da necessidade de deixar expresso os limites à ação dos poderes públicos. Tal positivação, aliada à afirmativa da universalidade dos direitos humanos, por outro lado, “[...] trouxe como conseqüência necessária a evolução para a fase de internacionalização, tida como base de uma proteção mais eficaz a tais direitos.” (STEINER; 2002, p. 71).

Piovesan (2005, p. 43-44) aponta que a concepção contemporânea de direitos humanos, inaugurada com o advento da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos.

A internacionalização dos direitos humanos surgiu em decorrência das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), na qual pereceram dezenas de milhões de pessoas, entre judeus, ciganos, homossexuais e comunistas. Em resposta à barbárie, a comunidade internacional percebeu a necessidade da construção de um sistema normativo internacional para a proteção e amparo aos direitos humanos, até então, inexistente. (MAZZUOLI; 2001, p. 6).

O horror do nazismo mudou o cenário mundial e despertou a consciência dos líderes mundiais quanto à necessidade da valorização da pessoa humana. Segundo Montoro (1999, p. 23), o holocausto cometido na Segunda Grande Guerra,

[...] provocou a revolta da consciência mundial e a constituição de um Tribunal Internacional, em Nuremberg, para julgar os crimes contra a humanidade, violadores dos fundamentos éticos da vida social. E deu origem ao movimento impulsionado pelas aspirações da população de todo mundo, culminando com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que constitui um dos documentos fundamentais da civilização contemporânea. A Declaração abre-se com a denúncia histórica dos ‘atos bárbaros, que revoltam a consciência da humanidade’. E afirma solenemente como valores universais, os direitos humanos básicos, como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à educação, à saúde e outros, que devem ser respeitados e assegurados por todos os Estados e por todos os povos.

A Declaração Universal de 1948 é composta por um preâmbulo consistente em sete “considerandos”, seguidos por trinta artigos que consagram tanto os direitos civis e políticos, quanto os sociais, econômicos e culturais.

Por revelar a posição ideológica da proteção dos direitos humanos que norteou a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, quando da elaboração do documento, vale a pena transcrever o Preâmbulo da Declaração Universal:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade, e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum.

Considerando ser essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão.

Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações.

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla.

Considerando que os Estados Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do homem e a observância desses direitos e liberdades.

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso.

Agora, portanto, a Assembléia Geral proclama a presente:

Declaração Universal dos Direitos Humanos

Como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

Trata-se, como se percebe, de um ideal a ser atingido por todos os povos e todas as nações: o reconhecimento e o respeito universal aos direitos e liberdades nela previstos, com especial menção à dignidade inerente a todo ser humano. O preâmbulo, assim, constitui a proclamação dos princípios enunciados na Carta, cuja observância passa a ser obrigatória por todos os Estados Membros.

Nesse sentido, a Declaração Universal teve como principal mérito inaugurar a concepção contemporânea de direitos humanos que, segundo Piovesan (2005, p. 43), é caracterizada pela universalidade e indivisibilidade:

[...] Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição da pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo dos direitos sociais, econômicos e culturais.

A Declaração Universal de Direitos Humanos inovou, pela primeira vez na história, ao consagrar não somente os direitos civis e políticos, mas também direitos econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho e à educação, afastando, definitivamente a mentalidade de que uma classe de direitos (a dos direitos civis e políticos) merece reconhecimento e respeito, ao passo que outra classe (a dos direitos sociais, econômicos e culturais), ao contrário, não merece qualquer observância. (PIOVESAN; 2003, p. 35; 2005, p. 43).

Cabe lembrar, no entanto, que a Declaração Americana sobre Direitos Humanos, aprovada pela IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá, em abril de 1948, precedeu em alguns meses a Declaração Universal de 1948, e muito embora não a tenha influenciado diretamente, é certo que sua adoção anterior pelos estados americanos foi fundamental para que a Carta da ONU tivesse a adesão desses países. (STEINER; 2000, p. 48).

A par desta consideração, desde a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, e da aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948, começa a se solidificar o Direito Internacional dos Direitos Humanos, robustecido, nos anos seguintes, pelos diversos tratados internacionais destinados à proteção dos direitos fundamentais do homem, possibilitando, pela primeira vez na história, a responsabilização do Estado, no plano externo, pelos eventuais excessos ou abusos cometidos contra as pessoas em seu território.

Bilder, apud Piovesan (2003, p. 31), ao tratar do direito internacional dos direitos humanos, faz as seguintes colocações:

O movimento do direito internacional dos direitos humanos é baseado na concepção de que toda nação tem a obrigação de respeitar os direitos humanos de seus cidadãos e de que todas as nações e a comunidade internacional têm o direito e a responsabilidade de protestar, se um Estado não cumprir suas obrigações. O Direito Internacional dos Direitos Humanos consiste em um sistema de normas internacionais, procedimentos e instituições desenvolvidas para implementar esta concepção e promover o respeito dos direito humanos em todos os países, no âmbito mundial [...]

Como são inerentes a todo ser humano, os direitos humanos estão acima da competência de cada país, havendo, portanto, interesse internacional na proteção destes direitos. Diante desta nova concepção, Piovesan (2005, p. 44) aponta duas importantes conseqüências:

1. a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, transita-se de uma concepção “hobbesiana” de soberania centrada no Estado para uma concepção “kantiana” de soberania centrada na cidadania universal;

2. a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito.

A efetiva proteção dos direitos humanos está assegurada por três mecanismos: o sistema jurídico internacional ou global, o sistema jurídico regional (de que são exemplos os modelos da União Européia e da Organização dos Estados Americanos) e o sistema jurídico nacional.

Integrando-se ao sistema de proteção internacional dos direitos humanos, em atenção ao primado da prevalência dos direitos humanos como princípio orientador das relações internacionais, previsto no art. 4°, inciso II, da Constituição de 1988, o Estado brasileiro aprovou as principais Declarações de direitos humanos e ratificou os mais importantes tratados internacionais protetivos da pessoa, relativos tanto aos sistemas jurídicos global, como regional.

No sistema jurídico global, o Brasil aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); a Declaração do Direito ao Desenvolvimento (1986); a Declaração e Programa de Ação de Viena (1993); a Declaração de Pequim (1995); tendo também ratificado praticamente todos os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, de que são exemplos a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime e do Genocídio (1948), a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1999), e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1988). (MAZZUOLI; 2000, p. 189-190; 2005, p. 89-90).

Quanto ao sistema regional de proteção aos direitos humanos, no caso, o sistema interamericano, o Brasil ratificou a maior parte dos tratados, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), o Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte (1990), , a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994) e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999). (MAZZUOLI; 2000, p. 189-190; 2005, p. 89-90).

Desta forma, tendo o Brasil aprovado e ratificado as principais declarações e tratados Internacionais, adentrou o campo da proteção internacional dos direitos humanos, ampliando, no contexto do direito interno, o universo dos direitos fundamentais já assegurados pela Constituição.

A importância da Declaração Universal de 1948 é, como visto, manifesta, tanto como farol a iluminar os caminhos de todas as nações, como por ter inaugurado a noção contemporânea de direitos humanos. Atento a essa realidade, o constituinte de 1988, inspirado pela prevalência da dignidade da pessoa, consagrou, no Texto Constitucional inúmeros direitos humanos fundamentais. É o que passaremos a analisar a seguir.

1.1.2 Os direitos humanos na Constituição de 1988

A Constituição Cidadã, na expressão cunhada por Ulisses Guimarães, nasceu sob os auspícios de um regime democrático e é o marco do fim de um período negro em nossa história, caracterizado pelo autoritarismo e arbitrariedade do regime militar, no qual falar sobre direitos humanos era sinônimo de “subversão”.

Rompendo por completo com os laços ditatoriais do mais infame texto jurídico de nossa história, o AI – 5, os constituintes de 1988, promulgaram em 5 de outubro daquele ano, uma Constituição inspirada na prevalência do valor da dignidade da pessoa humana, harmonizando-se, assim, com a concepção contemporânea dos direitos humanos.

A Constituição, como norma fundamental e fundamento de validade da ordem jurídica de um Estado Democrático de Direito, deve ser entendida, mormente quanto à interpretação dos princípios fundamentais, como um núcleo imperativo que embasa e orienta toda a ordem constitucional. Tanto é assim, que os princípios fundamentais são insuscetíveis de alteração, por força do comando do art. 60, § 4° da Carta, que institui as denominadas cláusulas pétreas.

Dentro desse contexto, a Carta de 1988 é pródiga na instituição de direitos humanos fundamentais, muito mais do que as anteriores e mesmo as estrangeiras, bastando lembrar que a Constituição Alemã prevê cerca de vinte e poucos direitos fundamentais, o art. 153 da Emenda n° 1/69 enunciava cerca de trinta e cinco direitos e garantias, ao passo que o art. 5° DA Cara de 1988 enumera pelo menos setenta e seis, afora os nove ou dez do art. 6°, além dos relativos à matéria tributária (art. 150), o direito ao meio ambiente (art. 225), o direito à comunicação social (art. 220), portanto, cerca de uma centena, considerando que vários incisos do art. 5° consagram mais de um direito ou garantia. Implicando afirmar que o atual Texto prevê três vezes mais do que o anterior e cinco vezes mais do que a Declaração alemã. (FERREIRA FILHO; 2003, p. 284).

Silva (1999, p. 187), em linhas gerais, classifica os direitos fundamentais em cinco grupos, a saber: 1) os direitos individuais (art. 5°); 2) os direitos coletivos (art. 5°); os direitos sociais (arts. 6° e 193 e seguintes); 4) direitos à nacionalidade (art. 12) e direitos políticos (arts. 14 a 17).

Greco Filho (1993, p. 27), ao ensinar sobre os direitos fundamentais, ressalta que não cabe discutir se as declarações de direitos, incorporadas nos textos constitucionais na época moderna, pairam acima das leis e dos textos constitucionais ou se representam meras normas programáticas. O importante, segundo o indigitado autor, é observar que as declarações de direitos “têm força na medida em que os textos constitucionais erigiram seus ditames como princípios informadores e de validade de toda a ordem jurídica racional, e valem na medida em que essa mesma ordem jurídica está preparada para recebê-los”

Traçando um paralelo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1948, todos os seus trinta artigos encontram correspondência em nosso texto constitucional.

Assim é que já no art. 1° da Declaração Universal, no qual se lê: “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”, encontramos correspondências inúmeras com o Texto de 1988, a saber:

a) Liberdade, entendida como o estado ou condição de ser livre, respeitadas as restrições legais. A liberdade é bem jurídico fundamental, que guarda estreita ligação com o art. 5°, inciso II (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”). Outra equivalência seriam as várias expressões da liberdade, desde o caput do art. 5°, passando pela liberdade de pensamento (art. 5°, IV), liberdade de consciência e de crença (art. 5°, VI), liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5°, IX), liberdade de ir e vir (art. 5°, XV), o devido processo legal como condição sine qua non para a privação da liberdade (art. 5°, LIV), a previsão de habeas corpus, como remédio constitucional, quando alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção (art. 5°, LXVIII);

b) Igualdade, assegurada na cabeça do art. 5°, reforçado, ainda, pelo seu inciso I, que garante a igualdade entre gêneros;

c) Dignidade, alçada a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1°, III), e;

d) Fraternidade, consagrada quando o art. 3°, inciso III, dispõe que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Inúmeras outras correspondências existem não só entre os dois textos, mas também entre o texto constitucional e diversos tratados internacionais protetivos da pessoa e, apenas para citar alguns exemplos, observe-se que o art. 5°, inciso III da Constituição ao dispor que “ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento cruel, desumano ou degradante”, é reprodução do art. 5° da Declaração de 1948, do art. 7° do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e ainda do art. 5°, item 2 da Convenção Americana. A cabeça do art. 5° (“todos são iguais perante a lei”) encontra correspondência no art. VII da Declaração Universal, no art. 26 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no art 24 da Convenção Americana. O princípio da inocência presumida, previsto no art. 5°, LVII da Carta de 1988, é inspirado no art. XI da Declaração Universal, no art. 14, item 3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e no art. 8°, item 2 da Convenção Americana (PIOVESAN; 2000, p. 105).

O preâmbulo, em que pese não ter força normativa (LENZA; 2004, p. 51), contém a proclamação solene dos princípios gravados na Carta, consagrando a liberdade, a igualdade e a justiça, entre outros, como valores soberanos da sociedade. Vejamos:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Como fundamentos da República, entre outros, sagrou a cidadania e a dignidade da pessoa humana, sendo este, sem qualquer objeção, princípio informador de toda a interpretação constitucional.

A dignidade humana, principal direito fundamental da Carta Magna é, em última análise, a garantia de real efetividade de outros direitos fundamentais, como a isonomia, por exemplo. Com efeito, sobre ela, escreve Nunes (2004, p. 366):

É ela, a dignidade, o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais. A isonomia serve, é verdade, para gerar equilíbrio real, porém visando concretizar o direito à dignidade. É a dignidade que dá a direção, é ela o primeiro comando a ser considerado pelo intérprete.

No mesmo sentido, a lição de Piovesan (2003a, p. 44) que observa o valor da dignidade humana como princípio fundamental que serve de critério para a interpretação de todas as normas do ordenamento jurídico pátrio. Confira-se:

O valor da dignidade humana – ineditamente elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do art. 1.º, III – impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo o universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional.

Dentre os objetivos fundamentais do Estado brasileiro desponta a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária, a redução das desigualdades sociais e regionais, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, nos termos do art. 3°, inciso I, III e IV, da Carta.

Esses objetivos fundamentais da República brasileira deixam expressa a opção do Estado em conferir supremacia aos valores da dignidade e do bem estar de todas as pessoas, dando passo importantíssimo para a viabilização da justiça social.

O art. 4°, inciso II, da Constituição, prevê que a República brasileira rege-se em suas relações internacionais, entre outros, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. A referência do respeito aos direitos humanos como modelo a ser seguido pelo Brasil em suas relações internacionais referenda a importância desses direitos e revela a intenção dos constituintes em considerar os direitos humanos como tema de interesse mundial, reconhecendo, assim, sua universalização.

Entre os direitos fundamentais, a Constituição, já no inciso I do art. 5° reforça a igualdade entre gêneros, alarga o espectro das liberdades (incisos IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XIII, XIV, XV, XXXIII, LXI) e amplia os remédios constitucionais, prevendo, além do mandado de segurança (LXIX) e do habeas corpus (LXVIII), o mandado de segurança coletivo (LXX), o mandado de injunção (LXXI) e o habeas data (LXXII). A ação popular (LXXIII) teve seu objeto alargado, incluindo-se a proteção da moralidade administrativa.

Dentro do arcabouço de direitos fundamentais previstos nos incisos do art. 5° da Constituição, merece especial destaque os relativos à área penal e processual penal, aquinhoada com nada menos do que vinte e oito disposições. Apenas para citar algumas: a proteção contra tortura (III), a garantia da jurisdicionalidade (XXXV), o juízo independente e parcial (XXXVII), a instituição do júri (XXXVIII), a legalidade dos crimes e das penas (XXXIX), a irretroatividade da lei penal mais gravosa (XL), o devido processo legal (LIV) e o contraditório e ampla defesa (LV), a ilicitude das provas obtidas por meios ilícitos (LVI), a presunção da inocência (LVII) etc.

Ainda no art. 5°, foi garantido o direito de propriedade (XXII), porém esta deverá atender sua função social (XXIII), retirando-lhe, assim, o caráter absoluto, possibilitando ao Poder Público, a denominada desapropriação sanção (art. 182, § 4°, III, CF), caso a propriedade não esteja atendendo a sua função social.

Os direitos sociais, previstos no art. 6° da Constituição, assumem, definitivamente, o traço característico de direitos fundamentais, pois constituem um meio para a real efetividade de todos os outros direitos e liberdades.

Nesse sentido, Silva (1999, p. 187-188):

A Constituição, agora, fundamenta o entendimento de que as categorias de direitos humanos fundamentais, nela previstos, integram-se num todo harmônico, mediante influências recíprocas, até porque os direitos individuais, consubstanciados no seu art. 5°, estão contaminados de dimensão social, de tal sorte que a previsão dos direitos sociais, entre eles, e os direitos de nacionalidade e políticos, lhes quebra o formalismo e o sentido abstrato. Com isso, transita-se de uma democracia de conteúdo basicamente político-formal para a democracia de conteúdo social, se não de tendência socializante.[...]

Os direitos e garantias individuais, conforme preceitua o art 60, § 4°, IV da Constituição, passam a ser considerados cláusulas pétreas, e não pode sequer ser objeto de deliberação qualquer emenda constitucional tendente a aboli-los.

A imediata aplicação das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, conforme o disposto no § 1° do art. 5° da Constituição, é princípio que reforça, ao mesmo tempo, a imperatividade e a importância dessas normas, dotando-as, em nosso ordenamento jurídico, de plena efetividade.

[...]. Inadmissível, por conseqüência, a inércia do Estado quanto à concretização de direito fundamental posto que a omissão estatal viola a ordem constitucional, tendo em vista a exigência de ação, o dever de agir no sentido de garantir direito fundamental. Implanta-se um constitucionalismo concretizador dos direitos fundamentais. Vale dizer, cabe aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental. Esse princípio intenta assegurar as força dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. (PIOVESAN; 2003b, 223).

Não se pode olvidar, por derradeiro, que o constituinte originário, ao talhar o § 2° do art. 5°, segundo o qual, “os direitos e garantia expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por elas adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” abriu espaço para a inserção de outros direitos e princípios ao Texto Constitucional, que passam, desta forma, a fazer parte do arcabouço de direitos do nosso ordenamento legal.

Ao estabelecer tal preceito, o constituinte de 1988 desejou aderir a uma ordem de valores que não ficasse restrita tão somente ao texto formal da Carta, abrindo espaço para a inclusão de direitos outros, inclusive aqueles provenientes de tratados internacionais.

Assim, além dos direitos formalmente constitucionais, passam, por força da disposição constitucional em comento, a haver direitos materialmente constitucionais, ou seja, direitos não expressos na Constituição, nem no ordenamento jurídico positivo, mas que, por terem o traço característico de fundamentais, deve ser acolhidos em nosso ordenamento.

Os §§ 1° e 2° do art. 5° da Carta, como veremos oportunamente, estão no cerne da controvérsia sobre a hierarquia que os tratados internacionais de direitos humanos ocupam em nosso ordenamento jurídico.

1.2 Os tratados internacionais

No conceito formulado por Rezek (2002, p. 14), “tratado é todo acordo formal concluído entre sujeitos de Direito Internacional Público, e destinado a produzir efeitos jurídicos”.

Accioly (1991, p. 120) e Siqueira Júnior (2003, p. 9) referem-se às variedades de denominações existentes para os tratados: convenção, declaração, protocolo, convênio, acordo, ajuste, compromisso e ato. Concordam, no entanto, que tratados e convenções são termos sinônimos, enquanto que os demais são atos jurídicos internacionais de maior ou menor alcance, de caráter bilateral, multilateral, ou coletivo.

A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, marco importante para a codificação do direito internacional público, em seu art. 2. 1, “a”, define o tratado como sendo “um acordo internacional celebrado por escrito entre Estados e regido pelo direito internacional, quer conste de um documento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação particular”.

Apesar da Convenção de Viena de 1969 ter previsto apenas os acordos entre Estados, a lacuna foi suprida pela Convenção de 1986 sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais, cujo objetivo foi reconhecer as Organizações Internacionais como pessoas jurídicas de direito internacional público, capacitando-as, portanto, a firmar tratados e convenções internacionais.

O tratado internacional, ao lado dos costumes e dos princípios gerais do direito, é uma das fontes do direito internacional (ACCIOLY; 1991, p. 3), sendo este também o teor do art. 38, item 1, alíneas “a”, “b” e “c” do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.

Com efeito, Mazzuoli (2000, p. 40) assinala que os tratados internacionais são “[...] a principal fonte de obrigação do direito das gentes, posto que evidenciam de maneira categórica a aceitação expressa por parte dos Estados em regularem seus interesses de acordo com o direito internacional”.

Menezes (2004, p. 303), todavia, ressalta que nem todos os tratados são fonte do direito das gentes, destacando que esta qualidade somente pode ser atribuída aos tratados normativos, ou tratados-lei, pois possuem caráter geral e abstrato, podendo, desta forma, ser comparados a verdadeiras leis. Já os tratados-contratos, são geralmente bilaterais e servem a situações determinadas, a exemplo dos acordos para evitar bi-tributação, porém não fixam normas de direito internacional.

Regra geral, o tratado é formal, porque deve se revestir da forma escrita, muito embora Accioly (1991, p. 122) afirme não existir regra internacional que a isto os obrigue. Rezek (2002, p. 17), por seu turno, afirma que a forma escrita é imprescindível ao tratado internacional, principalmente em virtude do registro e publicidade do ato convencional, sistemática esta adotada pela Organização das Nações Unidas e demais organizações internacionais.

Os tratados internacionais só se aplicam aos Estados-partes e não podem criar obrigações para os não signatários. Nesse sentido, dispõe a Convenção de Viena, em seu art. 26 que “todo tratado em vigor só é obrigatório em relação às partes, devendo ser observado por elas de boa-fé, ao passo que o art. 27 determina: “uma parte não poderá invocar as disposições de seu direito interno como justificativa para o não cumprimento do tratado”.

As condições essenciais para que um tratado internacional seja considerado válido podem ser classificadas em intrínsecas ou extrínsecas. São condições intrínsecas: a capacidade dos agentes; o consentimento mútuo e livre e o objeto lícito e possível. Já as extrínsecas dizem respeito à fórmula escrita, a ratificação, a publicação e o registro. (SIQUEIRA JR; 2003, p. 11).

A capacidade dos agentes diz respeito à aptidão reconhecida aos Estados e demais organizações internacionais para adquirir direitos e contratar obrigações por meio de tratados. Cabe destacar que os agentes signatários, devem estar devidamente habilitados, daí a denominação plenipotenciários, isto é, detentores de plenos poderes.

Os tratados são expressão de consenso, vez que criam obrigações legais para os signatários. Desta forma, necessário o consentimento mútuo e livre, pois será considerado nulo o tratado cuja aprovação for obtida com o uso da força ou ameaça. Dispõe, nesse sentido, o art. 52 da Convenção de Viena.

A exemplo do que ocorre no direito interno, o consenso de vontades, no direito internacional, só pode ter por objetivo uma coisa materialmente possível e permitida pelo direito e pela moral (ACCIOLY, 1991, p. 125).

O tratado é, portanto, um acordo formal entre dois ou vários sujeitos de direito internacional, destinado a produzir efeitos somente em relação aos pactuantes, cuja observância é obrigatória, posto que uma parte não pode deixar de cumprir as disposições pactuadas sob a justificativa de que é contrário às disposições de seu direito interno.

As condições extrínsecas dos tratados internacionais, por se relacionarem com o processo de formação dos tratados serão abordadas a seguir.

1.2.1 Processo de formação dos tratados internacionais

O processo de formação diz respeito às fases pelas quais o tratado internacional tem de passar até sua conclusão. De acordo com Mazzuoli (2000, p. 41), são as seguintes etapas: a das negociações preliminares; a da assinatura ou adoção; a da aprovação parlamentar por parte de cada Estado interessado em se tornar parte no tratado; e, por fim, a da ratificação ou adesão do texto convencional.

Piovesan (2000, p. 68-69), assim as resume:

Em geral, o processo de formação dos tratados tem início com os atos de negociação, conclusão e assinatura do tratado, que são da competência do órgão do Poder Executivo. A assinatura do tratado, por si só, traduz aceite precário e provisório, não irradiando efeitos jurídicos vinculantes. Trata-se da mera aquiescência do Estado com relação à forma e ao conteúdo final do tratado. A assinatura do tratado, via de regra, indica tão-somente que o tratado é autêntico e definitivo.

Após a assinatura do tratado pelo Poder Executivo, o segundo passo é a sua apreciação e aprovação pelo Poder Legislativo.

Em seqüência, aprovado o tratado pelo Legislativo, há o ato de ratificação do mesmo pelo Poder Executivo. A ratificação significa a subseqüente confirmação formal por um Estado de que está obrigado a um tratado. Significa, pois, o aceite definitivo, pelo qual o Estado obriga-se pelo tratado no plano internacional. A ratificação é ato jurídico que irradia necessariamente efeitos no plano internacional.

No processo de formação dos tratados internacionais, a aprovação pelo parlamento e a posterior ratificação pelo Chefe do Executivo, são as fases mais importantes no âmbito de nosso estudo, pois estão diretamente relacionadas aos efeitos dos tratados, tanto na esfera internacional, como no campo do direito interno.

A Constituição Federal prevê a conjugação de vontades do Poder Executivo e do Poder Legislativo para a formal conclusão dos tratados internacionais, caracterizando-se, portanto, como ato complexo, assim disciplinado:

Art. 21. Compete à União:

I – manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais.

[...]

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

[...]

VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional.

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.

[...]

O primeiro ponto a destacar é que, conforme visto anteriormente, os termos tratados, convenções e atos internacionais, são sinônimos, não havendo diferença substancial entre as expressões.

A segunda observação diz respeito à expressão “resolver definitivamente” que, numa interpretação apressada do inciso I do art. 49, poderia levar a equivocada conclusão de que a ratificação do tratado internacional caberia ao Congresso Nacional, quando, em verdade, o termo empregado, apesar da impropriedade terminológica, significa que não é lícito ao Presidente da República ratificar o tratado com o parecer desfavorável do Parlamento (TEIXEIRA; 2004, p. 120).

O procedimento parlamentar, propriamente dito, inicia-se com a remessa pelo Presidente da República, de mensagem ao Congresso Nacional, na qual consta o inteiro teor do tratado e uma exposição de motivos.

A discussão inicia-se na Câmara dos Deputados, onde, por força do regimento interno, é enviado para a apreciação da Comissão de Relações Exteriores e depois à Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, que se manifesta sobre a constitucionalidade ou não do tratado. Participam da discussão do tratado, as demais comissões temáticas, desde que haja vinculação entre o conteúdo do tratado e a materialidade de suas funções. Por derradeiro, o tratado internacional é submetido a aprovação em plenário (TEIXEIRA; 2004, p. 121).

O Projeto de Decreto Legislativo, caso aprovado pela Câmara dos deputados, segue para a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal. De acordo com o regimento interno, a referida comissão tem poderes para decidir, de forma terminativa sobre os tratados internacionais. Aprovado o tratado pela Comissão, o Presidente do Senado comunica o plenário e remete o projeto de decreto legislativo para publicação no Diário Oficial. Na hipótese de rejeição do tratado internacional pela Comissão, o Presidente do Senado deve dar ciência da decisão ao plenário, onde poderá ainda ser aprovado, caso conte com a maioria relativa dos votos. A promulgação do decreto legislativo é da competência do Presidente do Senado Federal (TEIXEIRA; 2004, p. 121).

Concluídas, então, as fases de negociações preliminares e assinatura ou adesão, que são etapas preliminares, passam-se às fases de aprovação interna através de decreto legislativo editado pelo Congresso Nacional, que é mera anuência do Legislativo para que o Poder Executivo, através do Presidente da República, ratifique os termos do tratado, hipótese em que começara a vigorar no plano internacional.

A ratificação é o ato administrativo mediante o qual um chefe de Estado confirma o tratado firmado em seu nome ou em nome do Estado, declarando aceito o que foi convencionado pelo agente signatário (ACCIOLY; 1991, p. 126).

Importante ressaltar que o Congresso Nacional não ratifica o tratado. O decreto legislativo serve apenas, e tão somente, para autorizar a ratificação, que é ato privativo do Presidente da República. No soar dessas razões, cabe transcrever, por oportuna, a precisa lição de Medeiros apud Mazzuoli (2000, p. 77):

Os Parlamentos não ratificam tratados internacionais. Somente os examinam, autorizando ou não o Poder Executivo a comprometer o Estado. A ratificação, por conseguinte, é ato privativo do Chefe do Executivo, pelo qual este confirma às outras partes, em caráter definitivo, a disposição do Estado de cumprir um tratado internacional. Assim, convém fique nítido que a aprovação dada pelo Poder Legislativo não torna um tratado obrigatório, pois o Executivo tem ainda a liberdade de ratificá-lo ou não, conforme julgar mais conveniente. Essa regra é universal, sendo entendimento unânime que a decisão de ratificar cabe ao mesmo Poder em nome do qual foram assinados os tratados. Alega-se, basicamente, que, passado algum tempo da assinatura do acordo internacional, podem ter mudado as circunstâncias políticas, e a nova conjuntura não recomendar mais o engajamento do Estado [...] Um tratado em vigor internacionalmente no instante em que os Estados signatários se comunicam reciprocamente a existência dos instrumentos de ratificação. Tal notificação dá-se de duas formas: troca ou depósito dos aludidos instrumentos. A troca ocorre, em geral, nos acordos bilaterais e o depósito nos multilaterais. Depois de ratificado devidamente, o ato internacional precisa ser promulgado pelo Presidente da República e só então se incorpora à nossa legislação interna. Para evitar confusões, convém frisar que essa promulgação pelo Executivo, através de decreto, incorporando o ato internacional à legislação interna, não deve ser confundida com a promulgação da aprovação do ato internacional pelo Congresso, que assume a forma de um decreto legislativo, firmado pelo Presidente do Senado.

A incorporação do tratado internacional à nossa legislação interna, através da promulgação, mediante decreto do Presidente da República, conforme a lição de Medeiros, acima transcrita, não é idéia unânime entre nossos autores, principalmente quando se fala de convenção de proteção à pessoa.

Mazzuoli (2000, p. 110; 2001, p. 47) e Piovesan (2000, p. 100) sustentam, conforme estudaremos oportunamente, que apenas os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos são obrigatórios desde a ratificação, por conterem normas definidoras de direitos e garantias fundamentais que, de acordo com o § 1° do art. 5° da Constituição, têm aplicação imediata. Os demais tratados devem ser promulgados por decreto presidencial e publicados para, só então, adquirirem força normativa interna.

A promulgação do decreto presidencial, em sentido contrário, é condição necessária para que toda e qualquer convenção internacional seja incorporada ao direito interno. (GOMES; 1994, 23).

Ao tecer comentários sobre o procedimento constitucional para a celebração de tratados, previstos nos arts. 49, inciso I e 84, inciso VIII, Piovesan (2000; p. 72) faz severa crítica, afirmando que se trata de

[...] sistemática lacunosa, falha e imperfeita, ao não prever, por exemplo, prazo para que o Presidente da República encaminhe ao Congresso Nacional o tratado por ele assinado (emblemático é o caso da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, que foi assinada em 1969 e encaminhada à apreciação do Congresso apenas em 1992), Não há ainda previsão de prazo para que o Congresso Nacional aprecie o tratado e nem tampouco previsão de prazo para que o Presidente da República ratifique o tratado, se aprovado pelo Congresso.

Fixados estes pontos, passaremos, então, a analisar como o direito internacional, representado pelos tratados internacionais, se relaciona com o direito interno.

1.2.2 O ingresso dos tratados no ordenamento jurídico interno: teorias em confronto

O confronto entre os tratados internacionais e o direito interno dos Estados é tema que ainda causa muita dúvida e polêmica. Duas correntes doutrinárias que se contrapõem: a dualista e a monista, sendo esta última subdividida em nacionalista e internacionalista, procuram explicar, cada uma com suas justificativas, a relação entre o direito das gentes e o direito interno.

A primeira corrente, iniciada na Alemanha por Triepel, em 1899 (GOMES; 1994, p. 21; MAZZUOLI; 2000, p. 60), denominada dualista, sustenta que o direito internacional e o direito interno dos Estados são duas ordens distintas e independentes, de modo que a validade jurídica de um não interfere na do outro. Não existe, assim, qualquer conflito entre as duas ordens jurídicas, eis que o direito internacional obriga o Estado nas suas relações externas, enquanto o direito interno obriga os súditos.

O dualismo assenta-se sobre a diversidade das fontes de produção normativa das normas jurídicas internas e internacionais e aos destinatários destas normas: enquanto estas são formuladas pelos Estados, em conjunto, para serem aplicadas aos próprios Estados, as primeiras são formuladas pelo Estado, unilateralmente, para serem aplicadas aos seus súditos. (MENEZES, 2004, p. 315).

Para os dualistas, então, as normas provenientes do direito internacional só podem obrigar internamente o Estado em decorrência de um ato normativo, expedido pelo Poder Legislativo, que as converta em regras de direito interno.

A corrente monista, cujo precursor foi Hans Kelsen (GOMES; 1994, p. 22 e MAZZUOLI; 2000, p. 62) prega, em linhas gerais, a unicidade de ambas as ordens jurídicas, não concebendo um sistema jurídico interno separado do direito internacional.

Esta vertente doutrinária entende que o direito interno e o direito internacional formam uma unidade jurídica com o mesmo fundamento de validade. Assim, se um Estado assina e ratifica um tratado internacional, assume um compromisso que envolve direitos e obrigações, exigíveis no âmbito interno do Estado, não se fazendo necessário, só por isso, a edição de um novo diploma materializando internamente aquele compromisso exterior (MAZZUOLI; 2000, p. 61-62).

Não obstante, dividem-se os monistas em nacionalistas e internacionalistas, que se posicionam diferentemente, de acordo com as conseqüências do eventual conflito entre o direito interno e o direito internacional.

Os monistas nacionalistas sustentam a primazia do direito interno de cada Estado soberano e a descentralização da sociedade internacional, ressaltando que a Constituição é a norma suprema, contra a qual nenhuma outra norma pode se sobrepor. Destarte, em caso de conflito de normas de direito internacional e direito interno, prevalece esta última.

Os monistas internacionalistas, por outro lado, defendem a predominância da norma de direito internacional em caso de conflito com a de norma interna do Estado. Justificam o posicionamento na unicidade da ordem jurídica sob o primado do direito internacional, a que se submetem todas as ordens internas.

Sussekind apud Gomes (1994, p. 22) resume, com mérita propriedade, os argumentos das duas teorias :

Para a teoria monista não há independência entre a ordem jurídica internacional e nacional, razão porque a ratificação do tratado por um Estado importa na incorporação automática de suas normas à respectiva legislação interna. Para a teoria dualista, as duas ordens jurídicas – internacional e nacional – são independentes e não se comisturam. A ratificação do tratado importa no compromisso de legislar na conformidade do diploma ratificado, sob pena de responsabilidade do Estado na esfera internacional; mas a complementação ou modificação do sistema jurídico interno exige um ato formal por parte do legislador nacional.

Ambos os sistemas são corretos e têm suas justificativas. A opção por uma das duas correntes, ora optando-se pela primazia do direito interno, ora optando-se pela preeminência do direito internacional, segundo Teixeira (2004, p. 114), não escapa da esfera política, quando se pretende definir a relação entre direito interno e o direito internacional.

Mazzuoli (2000, p.64), por outro lado, destaca que a questão envolvendo as duas teorias é relevante para entender se um Estado pode ou não invocar o seu ordenamento jurídico para se esquivar do descumprimento de um tratado internacional e ressalta que a resposta só pode ser negativa diante do que dispõe o art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (“uma parte não poderá invocar as disposições de seu direito interno como justificativa para o não cumprimento de um tratado”), bem como pelos reiterados pronunciamentos da Corte Internacional de Justiça.

Cumpre observar que, no Brasil, a Constituição de 1988 não faz menção expressa ao sistema (monista ou dualista) adotado para a incorporação de tratados em nosso ordenamento jurídico. (MAZZUOLI; 2001, p. 43).

Parece, no entanto, haver certo consenso entre nossos autores de que o Brasil perfila-se ao sistema monista.

Nesse sentido, leciona Steiner (2000, p. 70) que “nem o decreto legislativo, nem o decreto do executivo de promulgação podem ser considerados lei no sentido de norma de direito interno editada segundo a forma e procedimento previstos na Constituição.” A autora socorre-se da doutrina de DALLARI, e conclui:

[...] o tratado ingressa no direito brasileiro – e entendo que essa é uma questão pacífica hoje – com vida própria, com forma própria, por força do compromisso internacional celebrado pelo Brasil, sendo o decreto presidencial a via pela qual se dá a publicidade ao seu conteúdo e se fixa o início de sua vigência no território nacional. Prevalece, assim, a solução monista para o dilema da integração dos tratados de direito internacional público ao direito interno.

Teixeira (2004, p. 123-124), por seu turno, apesar de entender filiar-se o Brasil ao sistema monista, cita decisão da negatória da Suprema Corte em dar cumprimento à carta rogatória n° 8279/1998, expedida pela Argentina, requerida com base no Protocolo de Medidas Cautelares (Ouro Preto/MG), pois, a referida convenção, embora aprovada pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo 192/95) e devidamente ratificada, ainda não fora promulgada, mediante decreto, pelo Presidente da República. Com base nestes argumentos, o indigitado autor aponta que o STF, pelo menos nesta decisão, orientou-se pela adoção do dualismo.

A despeito dessas considerações, especificamente na área dos direitos humanos, Cançado Trindade (2002, p. 641-642) sustenta que a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão projetou-se no âmbito interno dos Estados, e suas normas foram incorporadas nas constituições de diversos países, passando até mesmo a ser invocada ante os tribunais nacionais como forma de interpretar o direito interno. A Declaração de 1948 tem, assim, contribuído para a incidência da dimensão dos direitos humanos no direito tanto internacional como interno. Em suas palavras,

[...] Os direitos humanos fazem abstração da compartimentalização tradicional entre os ordenamentos jurídicos internacional e interno; no presente domínio de proteção, o direito internacional e o direito interno encontram-se em constante interação, em benefício de todos os seres humanos.

Longe de operarem de modo estanque ou compartimentalizado o Direito Internacional e o direito interno passaram efetivamente a interagir, por força das disposições de tratados de direitos humanos atribuindo expressamente funções de proteção aos órgãos do Estado, assim como da abertura do Direito Constitucional contemporâneo aos direitos humanos internacionalmente consagrados. Descartou-se, assim, no plano vertical, o velho debate acerca da primazia das normas de Direito Internacional ou do direito interno, por se mostrarem estas em constante interação no presente domínio de proteção. Desvencilhando-se das amarras da doutrina clássica, o primado passou a ser da norma – de origem internacional ou interna – que melhor protegesse os direitos humanos, da norma mais favorável às supostas vítimas.

De toda forma, é importante ressaltar que, hodiernamente, perdeu o sentido a discussão sobre as teorias monista e dualista, em virtude da crescente interação das relações internacionais. Ademais, é a Constituição de cada Estado que vai especificar as regras para a incorporação das normas internacionais ao direito interno. No caso brasileiro, apesar da omissão do texto constitucional, conclui-se que o sistema adotado é o monista, sem embargo das posições divergentes, pois não há necessidade de lei em sentido formal para a materialização interna das normas convencionais.

1.3 Os tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro

Conforme visto anteriormente, a Constituição de 1988 consagrou, em seu texto, extenso rol de direitos humanos fundamentais. Dentro dessa perspectiva, poder-se-ia questionar o por que da preocupação com os direitos humanos previstos nas normas convencionais.

Sobre a pergunta, algumas considerações podem ser colocadas. Em primeiro lugar, apesar do que Ferreira Filho (2003, p. 285) denomina “inflação de direitos fundamentais”, é necessário lembrar que o direito não é estático, ao contrário, a evolução constante da sociedade pede que o legislador, atento às mudanças ocorridas, implemente ou transforme em normas jurídicas os novos valores agregados à sociedade. O direito, assim, está em constante evolução.

Outro aspecto a ser considerado é que nenhuma nação está obrigada a ratificar tratados internacionais, quaisquer que sejam, mas se assim o faz, é porque aceita seus termos, obrigando-se a respeitá-los, tanto no âmbito do direito interno, como no plano internacional.

Por outro lado, o constituinte de 1988, atento às modificações sociais e ao caráter dinâmico do direito, ainda que não aquele exclusivamente proveniente da lei, deixou estampado no § 2° do art. 5° que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Tal previsão confirma que o rol dos direitos fundamentais não é exaustivo, sendo este também o cerne da controvérsia sobre o grau hierárquico dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro.

Dentro desta argumentação, algumas situações podem acontecer, quando o Brasil ratifica tratados internacionais protetivos da pessoa, e que irradiam, necessariamente, efeitos na ordem jurídica interna.

A relação entre a norma convencional e a Constituição é estudada por Gomes (1994, p. 25), que assim a explica:

[...] a) a norma internacional pode configurar mera repetição ou explicitação de um texto constitucional; b) de outro lado, pode ser expressão de um direito distinto, explicitamente não previsto na Constituição. Esse direito ‘distinto’ pode ser conforme à Constituição ou contrário a ela (nesse último caso dá-se um conflito entre a norma internacional e o Texto Constitucional). [...]

Quanto ao primeiro caso – a norma proveniente de tratado repete ou explicita o texto constitucional, ou de modo contrário, a Constituição repete a norma convencional – não existem maiores problemas.

Nessa hipótese (a norma do tratado repete ou explicita o texto constitucional), ainda que não se admita o status constitucional da mesma, sua importância reside no fato de que, ao ingressar em nosso ordenamento jurídico, complementa direito assegurado constitucionalmente. O inciso LVII do art. 5° da Constituição consagra o princípio da presunção de inocência (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”), assim, é explicitado pelo art. 8°, 2 (que prevê, nada menos do que oito alíneas especificando seu conteúdo), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Por outro lado, temos disposições constitucionais, como a do inciso III do art. 5°, segundo a qual, “ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”, que simplesmente repete a norma proveniente de tratado. Neste caso a disposição constitucional é coincidente como o art. V da Declaração Universal dos Direitos do Homem (“ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”), e com o art. 5°, 2, do Pacto de San José da Costa Rica (“ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes [...]”). (MAZZUOLI; 2000, p. 125).

A reprodução dos preceitos de tratados internacionais protetivos do ser humano na Constituição reflete não apenas o fato do legislador constituinte ter se orientado pelas normas de tais instrumentos, “mas ainda revela a preocupação do legislador em equacionar o Direito interno, de modo a que se ajuste, com harmonia e consonância, às obrigações internacionalmente assumidas pelo Estado brasileiro.” (PIOVESAN; 2003a, p. 49).

A situação se complica, no entanto, quando a norma do tratado internacional consagra um direito distinto, não prevista em sede constitucional, ou ainda, quando dispõe de modo contrário ao preceito da Constituição. A solução, em ambos os casos, dependerá da interpretação que se empresta à hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, caso em que, se se admitir que estes têm status constitucional (por força do § 2° do art. 5° da CF), prevalecem sobre a legislação ordinária que com eles conflite, revogando-a, e afastando a incidência da norma constitucional que seja menos ampla, em homenagem ao princípio da primazia da norma mais favorável à proteção do indivíduo, conforme preleciona Piovesan (2003a, p. 53). Quando, por outro lado, se sustenta que os tratados internacionais ingressam em nosso ordenamento jurídico guardando paridade normativa com as leis ordinárias, a norma constitucional sempre prevalecerá em caso de conflito com a disposição da norma convencional, sendo certo também que, em caso de conflito desta com a legislação ordinária, prevalece o critério temporal da aplicação das leis no tempo: a norma posterior revoga a anterior que com ela seja conflitante.

Feitas essas considerações, passamos a examinar as posições doutrinárias.

1.3.1 As posições doutrinárias

Nesta parte analisaremos as correntes doutrinárias que se contrapõem na justificação do caráter normativo que os pactos internacionais ocupam no ordenamento jurídico interno.

Em primeiro lugar examinaremos os argumentos daqueles que atribuem aos tratados internacionais o status de normas constitucionais. A seguir delinearemos o pensamento dos autores que sustentam a paridade normativa entre os tratados e as leis ordinárias, para, então, pesquisar a posição do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.

Por derradeiro, analisaremos as mudanças introduzidas pela Emenda Constitucional n° 45/04, que acrescentou o § 3° ao art. 5° da Carta, e tentaremos extrair seu significado e suas conseqüências na sistemática de incorporação dos tratados em nosso ordenamento jurídico.

1.3.1.1 A doutrina que defende o status de norma constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos

Ao longo dos últimos anos, os estudiosos do direito constitucional, como ressaltamos anteriormente, debatem-se sobre a hierarquia que os tratados internacionais que versam sobre direitos humanos ocupam, bem como a sua aplicabilidade no ordenamento jurídico interno. A origem da controvérsia é o disposto nos §§ 1° e 2° do art. 5° da Constituição Federal, que assim estão redigidos:

Art. 5° [...]

[...]

§ 1° As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2° Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Grande parte de nossos autores entende que, por força dos dispositivos acima citados, os tratados internacionais de direitos humanos, depois de ratificados pelo Estado brasileiro, ingressam em nosso ordenamento jurídico com status de normas constitucionais, contrapondo-se à outra corrente, porém não menos abalizada, que sustenta que os ditos tratados ingressam em nosso ordenamento jurídico como leis ordinárias.

Cançado Trindade (1999, p. 25), pioneiro ao sustentar o caráter constitucional das normas provenientes dos tratados internacionais de direitos humanos, ao comentar os §§ 1° e 2° do art. 5°, em conjugação com o art. 60, § 4°, IV da Carta Magna, assim expõe o tema:

Por meio deste dispositivo constitucional, os direitos humanos consagrados em tratados de direitos humanos em que o Brasil seja Parte incorporam-se ipso facto ao direito interno brasileiro, no âmbito do qual passa a ter “aplicação imediata” ( art. 5 (1), da mesma forma e no mesmo nível que os direitos constitucionalmente consagrados. A intangibilidade dos direitos e garantias individuais é determinada pela própria Constituição Federal, que inclusive proíbe expressamente até mesmo qualquer emenda tendente a aboli-los (art. 60 (4) (IV). A especificidade e o caráter especial dos tratados de direitos humanos encontram-se, assim, devidamente reconhecidos pela Constituição Brasileira vigente.

Se, para os tratados internacionais em geral, tem-se exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar as suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente, no tocante aos tratados de direitos humanos em que o Brasil é Parte, os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os artigos 5 (2) e 5 (1) da Constituição Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano de nosso ordenamento jurídico interno. Por conseguinte, mostra-se inteiramente infundada, no tocante em particular aos tratados de direitos humanos, a tese clássica – ainda seguida em nossa prática constitucional – da paridade entre os tratados internacionais e a legislação infraconstitucional

Flávia Piovesan (2000, p. 73), na mesma linha de entendimento, afirma que o § 2° do art. 5°, ao prescrever que “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros direitos decorrentes dos tratados internacionais”, a contrario sensu, a Lei Maior, está a incluir, no rol dos direitos constitucionalmente assegurados, todos os direitos decorrentes dos tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil. Em suas palavras,

[...] Este processo de inclusão implica na incorporação pelo texto constitucional destes direitos.

Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a hierarquia de norma constitucional. Os direitos enunciados nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é parte integram, portanto, o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados.

Tanto Cançado Trindade, como Piovesan, nas citações acima colacionadas, atribuem aos tratados internacionais de direitos humanos, um caráter especial e diferenciado que os distinguem de outros tratados internacionais comuns.

Esta diferenciação se justifica, na medida em que,

[...] os tratados internacionais de direitos humanos apresentam um caráter especial, distinguindo-se dos tratados internacionais comuns. Enquanto estes buscam o equilíbrio e a reciprocidade de relações entre Estados partes, aqueles transcendem os meros compromissos recíprocos entre os Estados pactuantes, tendo em vista que objetivam a salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados. Este caráter especial vem a justificar o status constitucional atribuído aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. Conclui-se, portanto, que o Direito brasileiro faz opção por um sistema misto que combina regimes jurídicos diferenciados—um regime aplicável aos tratados de direitos humanos e um outro aplicável aos tratados tradicionais. Enquanto os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos — por força do artigo 5º, §§ 1º e 2º — apresentam natureza de norma constitucional e aplicação imediata, os demais tratados internacionais apresentam natureza infraconstitucional e se submetem à sistemática da incorporação legislativa (PIOVESAN, apud LENZA; 1998, p. 113).

Conforme se percebe, então, a especificidade e o caráter especial dos tratados que versam sobre direitos humanos decorrem da interpretação que se faz do art. 5°, §§ 1° e 2° da Carta. Para melhor compreender a questão, é necessário mencionar que a inclusão dos direitos e garantias decorrentes de tratados internacionais (§ 2° do art. 5°) no rol dos direitos e garantias fundamentais é inovação do constituinte originário de 1988 (LENZA; 1998, p. 109 e MAZZUOLI; 2000, 96), não previsto anteriormente em nenhuma das Constituições brasileiras.

Por outro lado, é unânime na doutrina o entendimento segundo o qual o rol dos direitos e garantia fundamentais, previsto nos incisos do art. 5° da Carta, é meramente exemplificativo.

Por isso mesmo, Mazzuoli (2000, p. 100-101) atribui caráter aberto ao § 2° do art. 5° da Constituição. Vejamos:

O que ocorre, é que o parágrafo 2° do art. 5° da Constituição Federal de 1988, como se pode perceber sem muito esforço, tem um caráter eminentemente aberto (norma de fattispecie aberta), pois dá margem à entrada ao rol dos direitos e garantias consagrados na Constituição, de outros direitos e garantias provenientes dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte, o que passa a revelar o caráter não fechado e não taxativo do elenco constitucional dos direitos fundamentais (princípio da não identificação ou da cláusula aberta).

No mesmo sentido se posicionam Pfeiffer e Agazzi (2000, p. 214), mencionando que a redação do § 2° do art. 5° inclui os tratados internacionais de direitos humanos entre os denominados direitos fundamentais implícitos, que possuem status de normas constitucionais materiais.

Ambos os autores (Lenza, 1998, p. 111-112 e Mazzuoli, 2000, p. 101), assim como Cançado Trindade e Piovesan, citados anteriormente, inspirados nas lições dos constitucionalistas portugueses J. J. Canotilho e Jorge Miranda, afirmam que as normas decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos, caracterizam-se como normas materialmente constitucionais, ou seja, normas que, embora não estejam escritas formalmente na Constituição – fora, portanto, do texto constitucional – possuem conteúdo, por sua importância, de normas constitucionais.

Tendo como certo que os direitos humanos enquadram-se como direitos fundamentais do ser humano e afirmando a natureza de constitucionalidade material desses direitos, afirma Lenza (1988, p. 111-112) não importar como são veiculadas ou introduzidas estas normas no ordenamento jurídico brasileiro, e por fim, aduz: “o programa normativo constitucional não pode se reduzir, de forma positivística, ao ‘texto’ da Constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e os princípios da constituição, alargando o “bloco de constitucionalidade” a princípios não escritos [...]”.

Miranda, apud Piovesan (2000, p. 77), ao focalizar a cláusula aberta da Constituição de Portugal, assim se manifesta:

O n. 1 do art. 16 da Constituição (portuguesa) aponta para um sentido material de direitos fundamentais: estes não são apenas os que as normas formalmente constitucionais enunciem; são ou podem ser também direitos provenientes de outras fontes, na perspectiva mais ampla da Constituição material. Não se depara, pois, no texto constitucional em elenco taxativo de direitos fundamentais. Pelo contrário, a enumeração é uma enumeração aberta, sempre pronta a ser preenchida ou completada através de outros direitos ou, quanto a cada direito, através de novas faculdades para além daquelas que se encontram definidas ou especificadas em cada momento. Daí pode-se apelidar o art. 16, n. 1, de cláusula aberta ou de não tipicidade de direitos fundamentais.

Assim, buscando fundamentar o argumento de que as normas provenientes de tratados internacionais de direitos humanos têm status constitucional, valem-se, os autores citados, do caráter aberto do § 2° do art. 5° da Constituição, que assegura a recepção de normas que, por seu conteúdo, configuram-se materialmente constitucionais, independentemente de terem sido elaboradas pelo poder constituinte.

No soar destas razões, Piovesan (2000, p. 130-131) procurando demonstrar que a Carta de 1988 é um marco jurídico na transição democrática e na institucionalização dos direitos humanos no País, esclarece que o princípio da dignidade da pessoa humana é valor essencial e fornece unidade de sentido a ordem constitucional de 1988, estruturando-lhe todo o sistema.

O valor da dignidade humana – ineditamente elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do art. 1.º, III – impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo o universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional.

É nesse contexto que há de se interpretar o disposto no artigo 5.º, parágrafo 2.º do texto, que, de forma inédita, tece a interação entre o Direito Brasileiro e os tratados internacionais de direitos humanos [...] A Constituição de 1988 inova, assim, ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de norma constitucional.

Esta conclusão advém da interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional.

Recorde-se, neste compasso, que a Constituição aponta ser a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República (art. 1°, III), prescrevendo que nas relações internacionais, o Brasil rege-se pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4°, II). Some-se a tais previsões o extenso rol de direitos fundamentais previstos no art. 5°, e a cláusula aberta do § 2° do mesmo artigo. Todas essas disposições apregoadas no texto constitucional, segundo Steiner (2000, p. 109):

[...] deixam clara a opção do constituinte em aderir ao moderno movimento constitucionalista, centrado no reconhecimento da inderrogabilidade dos direitos fundamentais dos seres humanos e erigindo ao nível constitucional normas de garantia e proteção da pessoa. Mais ainda: alça o constituinte ao nível de norma constitucional as normas de proteção e garantia de direitos fundamentais assimiladas pelos tratados ratificados pelo País.

Passamos, agora, a analisar a tese da incorporação automática dos tratados que versam sobre direitos humanos no ordenamento constitucional, por força do § 1° do art. 5° da Constituição.

O raciocínio é simples: os tratados internacionais de direitos humanos, por conterem direitos e garantias fundamentais, enquadram-se na previsão do § 1° do art. 5°, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, e tendo em vista que as referidas normas veiculadas pelos pactos internacionais têm status de normas constitucionais – conforme assinalado pelo § 2° do art. 5°, passam os tratados, a ter aplicabilidade imediata no ordenamento jurídico interno, desde a sua ratificação.

Assim, não é da edição do Decreto Legislativo que os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos passam a ter aplicabilidade imediata no ordenamento brasileiro, mas sim em face de sua posterior ratificação pelo Presidente da República, dispensando-se até mesmo a edição de decreto presidencial de execução (exigível para os demais tratados) para que irradiem seus efeitos tanto no plano interno como no plano internacional, conforme preleciona Mazzuoli (2000, 110), que assim conclui a lição:

Além do art. 5°, § 1° da Carta da República impor esta conclusão, a autoaplicabilidade dos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos advém das próprias normas de direito internacional, pois, se um Estado compromete-se a acatar os preceitos de um tratado, é obvio que as normas devem ser imediatamente exigíveis

Pfeiffer e Agazzi (2000, p. 216) compartilham também do mesmo entendimento, segundo o qual é a mera ratificação que determina a incorporação e imediata aplicabilidade dos tratados ao direito interno.

Sobre outro prisma, pode-se dizer que a aplicação imediata das normas provenientes dos tratados protetivos da pessoa decorre do caráter especial que estes instrumentos têm, pois são elaborados visando à proteção dos direitos fundamentais da pessoa, concedendo ao indivíduo um direito claramente definido e exigível e sendo suficientemente específicos para poder serem aplicados sem necessidade de qualquer ato legislativo, configurando-se, nesse sentido, como self-executing, ou normas diretamente aplicáveis

A aplicação imediata dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos representa, em última análise, o rompimento com o já vergastado princípio da reciprocidade, que orientava a aplicação dos tratados internacionais pelos Estados Nacionais e limita o exercício da soberania, restringindo, principalmente a possibilidade de os Estados formularem reservas aos tratados que tenham por conteúdo diminuir sua eficácia através do cumprimento parcial de suas normas, obrigando-os, por disposições expressamente arroladas nas Constituições, à imediata aplicação dos tratados internacionais nas ordens internas respectivas, uma vez que efetivamente recepcionaram a regra da autoexecutoriedade das normas inscritas nos tratados internacionais, podendo ser aplicadas e exigidas imediatamente do juiz nacional, posição que há muito já vem sendo enunciada pelos órgãos de controle e monitoramento dos direitos humanos, notadamente nos âmbitos regionais, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. (AYALA; 2001, p. 14)

Importante mencionar, dentro do entendimento do caráter constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, como seria a solução propugnada em caso de eventual conflito entre estes e a Constituição.

Em caso de antinomia entre o direito interno e a norma convencional, adota-se o princípio da norma mais favorável à vítima, regra proveniente do direito internacional, que diz prevalecer o preceito que melhor e mais eficazmente proteja os direitos humanos. “Assim, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca a restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional [...]” (PIOVESAN; 2003, p. 53-54).

Pfeiffer e Agazzi (2000, p. 226) também sustentam que em caso de eventual conflito entre norma de direito interno e tratado internacional, é de ser dada prevalência ao preceito mais favorável ao ser humano, princípio este que impõe a observância de duas regras, a saber:

Em primeiro lugar, não suscitar disposições de direito interno para impedir a aplicação de direitos mais benéficos ao ser humano previstos nos tratados ratificados. Tal regra consta de maneira expressa da maioria dos tratados, como advém da circunstância do Estado obrigar-se a acatar os preceitos dos tratados.

Ademais, estabelece a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu art. 27 que “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno como justificativa do não cumprimento de tratado”. Assim, a única maneira do Estado desligar-se das obrigações emanadas de um tratado dá-se através da denúncia, pouco adiantando a promulgação de lei interna que opere restrições a um direito estabelecido em tratado.

Por outro lado, caso exista alguma disposição existente em lei promulgada internamente que seja mais favorável às pessoas residentes no país, essa norma prevalece sobre as disposições que constem de tratados aos quais o país aderiu. Nesse sentido, por exemplo, estabelece o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em seu art. 5°, 2: “Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado-parte no presente Pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob o pretexto de que o presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau.”

Estes, os argumentos que escoram a doutrina que defende a hierarquia materialmente constitucional das normas provenientes de tratados internacionais protetivos do ser humano.

Passa-se a apreciação da vertente contrária, que defende a paridade normativa entre tratados e leis ordinárias.

1.3.1.2 A doutrina que sustenta a paridade normativa entre os tratados internacionais e as leis ordinárias

Analisamos, até agora, a opinião daqueles que defendem o ingresso dos tratados internacionais de direitos humanos com status de normas constitucionais e aplicação imediata.

Passaremos, então, a partir deste momento, a examinar o posicionamento daqueles que sustentam a paridade normativa entre os tratados internacionais e as leis ordinárias, no âmbito de aplicação do direito interno.

O constitucionalista Ferreira Filho (2004, p. 101), fornece a noção exata dos argumentos dos defensores do status de norma ordinária dos tratados internacionais protetivos da pessoa:

Embora haja quem pretenda ser a norma do tratado superior, sempre, à lei interna de tal sorte que prevaleceria mesmo quando esta fosse a ela posterior, conquanto haja quem pretenda, até, ser a norma do tratado superior à própria norma constitucional, nenhuma destas duas teses encontra fundamento no direito brasileiro.

Neste, três normas regem a matéria: primeira, jamais norma de tratado prevalece sobre a Constituição; segunda, a norma de tratado, desde que devidamente incorporada ao direito pátrio, prevalece sobre lei interna anterior; terceira, tendo, porém, o mesmo nível na hierarquia das leis que a norma interna, não prevalece sobre lei posterior (que pode revogá-la, derrogá-la etc).

Araújo e Nunes Júnior (2004, p. 182-183) também entendem que o tratado internacional ingressa no ordenamento jurídico interno no plano das leis ordinárias. Vejamos seus argumentos:

[...] Se pudéssemos entender que o decreto legislativo pode alterar a Constituição Federal, incluindo direitos, estaríamos afirmando que se trata de um texto flexível, não rígido, abandonando uma tradição constitucional e não aplicando os princípios do art. 60 e seus parágrafos, regra de imutabilidade implícita.

O fato de o tratado entrar na ordem jurídica brasileira não significa obrigatoriamente que ele ingressará no plano constitucional. Não é essa a dicção do § 2° do art. 5°. O texto afirma que outros direitos devem ser integrados. Não quer dizer que o devam ser com a marca de norma constitucional.

Muitos tratados podem trazer novos direitos e restringir outros. O direito de propriedade é exemplo claro que pode ser restringido por um tratado internacional assinado pelo Presidente e ratificado pelo Congresso Nacional. Dessa forma, com a formalidade de um decreto legislativo, portanto, por maioria simples, estaríamos fazendo ingressar um novo direito na Constituição Federal, restringindo um já consagrado constitucionalmente, para proteger, de forma eficaz, outro por via de tratado.

Se ingressar na qualidade de norma constitucional, tal direito deverá ser petrificado, por força do art. 60, § 4°, da Lei Maior. E se os outros países signatários do tratado o denunciarem? A norma ingressa no sistema e dele é retirada?

Não pensamos que tal solução seja a mais adequada.

O tratado pode ser veiculador de direitos individuais e coletivos, mas ingressa na ordem jurídica brasileira com status de norma ordinária.

Chimenti et al (2004, p. 53) também entendem que o nível de eficácia dos tratados internacionais é o mesmo da lei ordinária, mesmo que consagrem, em seu texto, direitos individuais e coletivos e, assim, em caso de divergência de redação entre as normas convencionais e a Constituição, esta é que prevalecerá.

Menezes (2004, p. 320-321), apesar de silenciar sobre os tratados de direitos humanos, referindo-se somente aos tratados internacionais tributários, ressalta que a Constituição Federal não determinou a hierarquia do tratado em face da lei interna e, apoiando suas conclusões no art. 102, III, “b”, que dispõe competir ao STF julgar, “mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado...”, afirma que em caso de conflito de pactos internacionais e o Texto Constitucional, este deve prevalecer.

Duarte (2002, p. 82) entende que é o decreto legislativo que incorpora o tratado na ordem jurídica nacional e, desta forma, estudar a hierarquia dos tratados não é nada mais do que estudar a hierarquia dos decretos legislativos, que se situam no mesmo patamar das leis em geral.

Para o referido autor (2002, p. 83), o art. 5°, § 2° da Constituição não confere status constitucional a quaisquer tratados ou decretos legislativos que incorporem tratados, e assim justifica seu pensamento:

De começo, cumpre registrar que o processo de feitura de emendas constitucionais é caracterizado por severos limites. A matéria mereceu tamanha importância do constituinte que a Lea foi dedicado todo um artigo, a regrar o processo de mudança constitucional (art. 60 da CF). significa dizer, toda a matéria, para revestir-se da dignidade constitucional, precisará da aprovação de três quintos do congresso nacional, em dois turnos.

[...] há também a questão dos limites materiais para a reforma da Constituição., existe toda uma sorte de assuntos que não podem sequer ser discutidos pelo constituinte reformador, e que poderiam ser afetados caso se considerem iguais, hierarquicamente, os decretos legislativos que contenham tratados e a Constituição Federal. Se admitida tal interpretação, estar-se-ia abrindo mão da rigidez do texto constitucional e, por conseguinte, do princípio da segurança jurídica – que garante a todos os cidadãos que a ordem constitucional não será modificada da noite para o dia.

Palharini Jr. (2005, p. 768-769), por sua vez, sustenta que o princípio da celeridade processual (art. 5°, LXXVIII) incluído na Constituição por meio da Emenda n° 45, já se encontrava incorporado ao nosso ordenamento jurídico, em virtude da regra contida no § 2° do art. 5° que, como cláusula aberta, abrigou o preceito advindo do art. 7°, 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mas com status de lei ordinária.

O referido autor ressalta seu entendimento apoiado na inovação trazida pela Emenda Constitucional n° 45, que inseriu o § 3° ao art. 5°. Em suas palavras,

A importância dessa regra contida no tratado internacional crescia na medida em que a Constituição Federal abriga um sistema aberto de direitos e garantias individuais, incorporando aqueles oriundos da ordem internacional, conforme previsão do art. 5°, § 2°. No sistema jurisdicional interno, à sua vez, por não existir no Brasil previsão de prevalência aos tratados internacionais, antes da EC n° 45, eram estes equiparados às leis ordinárias, tendo com estas tratamento paritário.

Aqui cabe destacar que a EC n° 45 introduzindo o § 3° ao art. 5°, dispôs que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Esta regra não exclui aquela contida no art. 5°, § 2°, ao contrário, é daquela complementar. Assim, as convenções e os tratados internacionais, de que o Brasil fizer parte, que dispuserem sobre direitos e garantias serão tidos por lei ordinária no direito interno, salvo se se tratar sobre direitos humanos, quando serão considerados normas constitucionais, se aprovados pelo Congresso Nacional na forma estabelecida pelo § 3° introduzido pela EC n° 45 ao art. 5° da CF.

Almeida (2003, p. 54) não se convence do acerto da tese dos defensores do status constitucional das normas advindas de tratados internacionais de direitos humanos e, portanto, integrantes do denominado bloco de constitucionalidade, expondo seus argumentos da seguinte forma:

Não se nega que os direitos fundamentais sejam de índole materialmente constitucional, como alegam eles para justificar que as normas dos tratados de direitos fundamentais devam ser recebidas como normas constitucionais. Depois que o famoso artigo 16 da Declaração de Diretos do Homem e do Cidadão, de 1789, declarou enfaticamente que “a sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos e nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”, tornou-se consenso no constitucionalismo ocidental que os direitos do homem são matéria de natureza constitucional.

Mas isto, por si só, não autoriza a conclusão a que chegaram os que advogam hoje hierarquia privilegiada para os tratados de direitos humanos no Brasil. Sim, porque o certo é que nem toda matéria de natureza constitucional se esgota na Constituição formal. Assim sendo, é perfeitamente possível encontrar-se matéria dessa natureza disciplinada na legislação complementar ou ordinária, que se edite para integrar a eficácia da Constituição. E nem por isso essa legislação terá o status de normas constitucionais, integrando um “bloco de constitucionalidade”, sem que a Constituição expressamente disponha neste sentido.

[...]

Dir-se-á que a Constituição brasileira, com a previsão que consta no artigo 5°, § 2°, aderiu a uma tendência, muito ao gosto dos internacionalistas, de reconhecer o primado do direitos das gentes, em tema de direitos do homem. Ora, sem renegar – o que seria até ridículo – a importância da proteção dos direitos humanos na esfera internacional, o fato é que nosso constituinte pode até ter sido influenciado pela tendência de se reconhecer aquele primado, mas acabou não o estabelecendo na Constituição.

O que de concreto se extrai do art. 5°, § 2°, é que o catálogo de direitos da Constituição não constitui numerus clausus, ou, por outra, que não prevalece, na espécie, o brocardo inclusio unius exclusio alterius.

Assim, a Constituição abriu o leque para acolher como fundamentais também direitos decorrentes de tratados. Mas sem dizer que os acolhia na condição de normas constitucionais [...]

A mesma autora (2003, p. 55) sustenta que a recepção de normas provenientes de tratados internacionais de direitos humanos na condição de normas constitucionais provocaria situações incompatíveis com o nosso sistema jurídico-constitucional e ressalta que a inclusão de tais normas no texto constitucional corresponderia a uma modificação desse texto por processo de alteração diverso – mais simplificado, via decreto legislativo – daquele previsto para as emendas constitucionais.

De todos os argumentos analisados, talvez a posição mais singular seja a de Gomes (1994, p. 29), segundo a qual, diante do § 2° do art. 5° da Carta, todos os direitos e garantias expressos nos tratados internacionais, quando não conflitantes com o Texto Maior, têm amparo constitucional, mas nem sempre possuem status de norma constitucional, o que só ocorre quando repetitivos ou explicitadores das normas constitucionais.

Finalizada mais esta parte de nosso estudo, passamos a abordar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a hierarquia dos tratados internacionais em nosso ordenamento jurídico.

1.3.1.3 O posicionamento do Supremo Tribunal Federal

Concluída a análise das posições doutrinárias sobre o grau hierárquico dos tratados internacionais em nosso ordenamento jurídico, vejamos, em seguida, qual é o entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Como se sabe, antes da Emenda Constitucional n° 45/04, a Carta de 1988 nada dispunha acerca da posição hierárquica dos tratados internacionais de proteção à pessoa em nosso ordenamento jurídico.

O posicionamento do Supremo, pacífico há mais de vinte e cinco anos, é no sentido de que o tratado internacional, qualquer que seja, ingressa em nosso ordenamento jurídico, no âmbito da legislação ordinária e, destarte, deve obediência à Constituição Federal, por ser esta expressão máxima da soberania nacional, estando acima de qualquer tratado ou convenção internacional que com ela conflite.

O referido entendimento, firmado a partir do julgamento do Recurso Extraordinário n° 80.004, é mencionado por Rezek (2002, p.99), que assim resume o ponto de partida de nosso estudo:

De setembro de 1975 a junho de 1977 entendeu-se, no Plenário do Supremo tribunal Federal, o julgamento do RE 80.004, em que assentada, por maioria, a tese de que, ante a realidade do conflito entre tratado e lei posterior, esta, porque expressão última da vontade do legislador republicano deve ter sua prevalência garantida pela justiça – sem embargo do descumprimento do tratado, no plano internacional. [...]

[...] Admitiram as vozes majoritárias que, faltante na Constituição do Brasil garantia de privilégio hierárquico sobre as leis do Congresso, era inevitável que a justiça devesse garantir a autoridade da mais recente das normas, porque paritária sua estatura no ordenamento jurídico.

.

A partir de então, entende o STF que, em não havendo previsão na Carta Política de garantia de privilégio hierárquico dos tratados internacionais sobre o direito interno, deve ser aplicada regra segundo a qual a lei posterior revoga a lei anterior que com ela seja incompatível.

Poder-se-ia objetar a este entendimento que o leading case, a partir do qual se firmou o posicionamento do Supremo, analisou matéria relativa ao direito comercial e não assunto referente a direitos humanos, hipótese em que os tratados que versam sobre tal tema seriam parte de uma categoria especial e diferenciada, e segundo o disposto nos §§ 1° e 2° do art. 5° da Constituição, teriam caráter constitucional.

Mesmo diante de tais argumentos, e julgando conflito entre a Constituição e tratado internacional de direitos humanos, a posição da Suprema Corte não se alterou.

Caso dos mais debatidos perante o Supremo Tribunal Federal é a questão da prisão civil por infidelidade depositária, no qual as normas convencionais protetivas da pessoa e ratificadas pelo Brasil dispõem de uma forma e, conseqüentemente, entram em choque com a Constituição Federal, que dispõe de modo diverso.

A Constituição de 1988 determina, no inciso LXVII, do art. 5°, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.”

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), no art. 11, dispõe que “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual.”. A Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), mais conhecida por Pacto de San José da Costa Rica, determina no art. 7°, 7, que “ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”. Ressalte-se que ambos os tratados foram ratificados pelo Brasil, tendo sido, inclusive, promulgados pelo Presidente da República, o primeiro, através do Decreto 592, de 6 de julho de 1992, e o Pacto de San José, pelo Decreto 678, de 6 de novembro de 1992.

Partindo dessa perspectiva, poder-se-ia afirmar que o Estado brasileiro, ao ratificar os referidos atos internacionais, teria afastado a incidência, ou mesmo revogado, a permissão da prisão para o infiel depositário previsto na Constituição Federal. Segundo a orientação do Pretório Excelso, não.

Confira-se o seguinte acórdão:

Habeas-corpus preventivo. prisão civil de depositário infiel decretada em ação de depósito de bem alienado fiduciariamente (art. 66 da lei nº 4.728/65 e decreto-lei nº 911/69): art. 5º, LXVII, da Constituição e Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), Dec. nº 678/92. alegação de prescrição da pretensão punitiva.

I - Preliminar. Questão nova: prescrição. O Tribunal a quo não pode ser considerado coator quanto às questões que não lhe foram submetidas e, neste caso, a autoridade coatora continua sendo o Juiz de primeiro grau: incompetência do Supremo Tribunal Federal. "Habeas-corpus" não conhecido nesta parte. Precedentes.

II - Mérito.

1- A Constituição proíbe a prisão civil por dívida, mas não a do depositário que se furta à entrega de bem sobre o qual tem a posse imediata, seja o depósito voluntário ou legal (art. 5º, LXVII).

2- Os arts. 1º (art. 66 da Lei nº 4.728/65) e 4º do Decreto-lei nº 911/69, definem o devedor alienante fiduciário como depositário, porque o domínio e a posse direta do bem continuam em poder do proprietário fiduciário ou credor, em face da natureza do contrato.

3- A prisão de quem foi declarado, por decisão judicial, como depositário infiel é constitucional, seja quanto ao depósito regulamentado no Código Civil como no caso de alienação protegida pela cláusula fiduciária.

4- Os compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte (§ 2º do art. 5º da Constituição) não minimizam o conceito de soberania do Estado-povo na elaboração da sua Constituição; por esta razão, o art. 7º, nº 7, do Pacto de São José da Costa Rica, ("ninguém deve ser detido por dívida": "este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar") deve ser interpretado com as limitações impostas pelo art. 5º, LXVII, da Constituição.

5- "Habeas-corpus" conhecido em parte e, nesta parte, indeferido. (HC 73.044-SP, 2ª T, relator Min. Maurício Correa, v.u., j. 19.03.1996, DJ 20.09.1996, p. 34.534) (apud SIQUEIRA JR; 2003, p. 22-23)

Em despacho monocrático, proferido pelo Ministro Celso de Mello, como Presidente do STF, no Habeas corpus 77.631-5-SC (publicado no DJ 158-E, de 19.08.1998, Seção I, p. 35), resolveu-se a constitucionalidade da prisão do depositário infiel, mesmo em confronto com o disposto no Pacto de San José da Costa Rica, abordando, inclusive, o disposto no § 2° do art. 5° da Constituição. Vejamos:

A circunstância de o Brasil haver aderido ao Pacto de São José da Costa Rica - cuja posição, no plano da hierarquia das fontes jurídicas, situa-se no mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas - não impede que o Congresso Nacional, em tema de prisão civil por dívida, aprove legislação comum instituidora desse meio excepcional de coerção processual destinado a compelir o devedor a executar obrigação que lhe foi imposta pelo ordenamento positivo, nos casos expressamente autorizados pela própria Constituição da República.

Os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição, pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental.

Não me parece que o Estado brasileiro deva ter inibida a prerrogativa institucional de legislar sobre prisão (civil) por dívida, sob o fundamento de que o Pacto de São José da Costa Rica teria pré-excluído, em sede convencional, ao menos no que se refere à hipótese de infidelidade depositária, a possibilidade de disciplinação desse mesmo tema pelo Congresso Nacional. É que não se pode perder de perspectiva a relevantíssima circunstância de que existe expressa autorização inscrita no texto da Constituição brasileira, permitindo ao legislador comum a instituição da prisão civil por dívida, ainda que em hipóteses revestidas de absoluta excepcionalidade.

[...]

Parece-me irrecusável, no exame da questão concernente à primazia das normas de direito internacional público sobre a legislação interna ou doméstica do Estado brasileiro, que não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o art. 5º, § 2º, da Carta Política, um inexistente grau hierárquico das convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre as prescrições fundadas em texto constitucional, sob pena de essa interpretação inviabilizar, com manifesta ofensa à supremacia da Constituição - que expressamente autoriza a instituição da prisão civil por dívida em duas hipóteses extraordinárias (CF, art. 5º, LXVII) -, o próprio exercício, pelo Congresso Nacional, de sua típica atividade político-jurídica consistente no desempenho da função de legislar.

É preciso não perder de perspectiva que a vedação da prisão civil por dívida, no sistema jurídico brasileiro, possui extração constitucional. A Lei Fundamental, ao estabelecer as bases do regime que define a liberdade individual, consagra, em tema de prisão civil por dívida, uma tradição republicana, que, iniciada pela Constituição de 1934 (art. 113, n. 30), tem sido observada, com a só exceção da Carta de 1937, pelos sucessivos documentos constitucionais brasileiros (CF/46, art. 141, § 32; CF/67, art. 150, § 17; CF/69, art. 153, § 17). A Constituição de 1988, perfilhando essa mesma orientação, dispõe, em seu art. 5º, LXVII, que "Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel"

[...]

A indiscutível supremacia da ordem constitucional brasileira sobre os tratados internacionais, além de traduzir um imperativo que decorre de nossa própria Constituição (art. 102, III, b), reflete o sistema, que, com algumas poucas exceções, tem prevalecido no plano do direito comparado, que considera inválida a convenção internacional que se oponha, ou que restrinja o conteúdo eficacial ou, ainda, que importe em alteração da Lei Fundamental (Constituição da Nicarágua de 1987, art. 182; Constituição da Colômbia de 1991, art. 241, n. 10; Constituição da República da Bulgária de 1991, art. 149, § 1º, n. 4, v.g.).

Como as exceções derrogatórias ao postulado fundamental que veda a prisão civil por dívida possuem inquestionável matriz constitucional (MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", vol. 1/74, 1990, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 2/305-306, 1989, Saraiva), torna-se evidente que a legitimidade jurídica da prisão civil por dívida, nas duas hipóteses previstas em nossa Lei Básica, tem, na própria Constituição - e não em outros instrumentos normativos de inferior qualificação hierárquica -, o fundamento de sua autoridade e o suporte direto de sua validade e eficácia.

Desse modo, não há como fazer abstração da Constituição, para, com evidente desprestígio da normatividade que dela emana, conferir, sem razão jurídica, precedência a uma convenção internacional (apud RESTIFFE NETO; RESTIFFE; 1998, 45-46)

O mesmo Ministro Celso de Mello, como relator no acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade – Medida Cautelar (ADIMC n° 1480/DF), julgado em 04.09.1997, pelo Tribunal Pleno, indica, com precisão, o posicionamento da Egrégia Corte:

É na Constituição da República – e não na controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas – que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro. O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I), e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe – enquanto Chefe de Estado que é – da competência para promulgá-los mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados internacionais – superadas as fases prévias da celebração da convenção internacional, de sua aprovação congressional e da ratificação pelo Chefe de Estado – conclui-se com a expedição, pelo Presidente da República, de decreto, de cuja edição derivam três efeitos básicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação do tratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional que passa, então, e somente então, a vincular e obrigar no plano do direito positivo interno. Precedentes. SUBORDINAÇÃO NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. – No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política. O exercício do treaty-making power, pelo Estado brasileiro – não obstante o polêmico art. 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação perante o Congresso Nacional) -, está sujeito à necessária observância das limitações jurídicas impostas pelo texto constitucional. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DE TRATADOS INTERNACIONAIS NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO. – O Poder Judiciário – fundado na supremacia da Constituição da República – dispõe de competência, para, quer em sede de fiscalização absoluta, quer no âmbito do controle difuso, efetuar o exame de constitucionalidade dos tratados ou convenções internacionais já incorporados ao sistema de direito positivo interno. Doutrina e jurisprudência.

PARIDADE NORMATIVA ENTRE ATOS INTERNACIONAIS E NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS DE DIREITO INTERNO. – Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (“lex posterior derogat priori”) ou, quando cabível, do critério da especialidade. Precedentes. TRATADO INTERNACIONAL E RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR. – O primado da Constituição, no sistema jurídico brasileiro, é oponível ao princípio pacta sunt servanda, inexistindo, por isso mesmo, no direito positivo nacional, o problema de concorrência entre tratados internacionais e a Lei Fundamental da República, cuja suprema autoridade normativa deverá sempre prevalecer sobre os atos de direito internacional público. Os tratados internacionais celebrados pelo Brasil – ou aos quais o Brasil venha a aderir – não podem, em conseqüência, versar sobre matéria posta sob reserva constitucional de lei complementar. É que, em tal situação, a própria Carta Política subordina o tratamento legislativo de determinado tema ao exclusivo domínio normativo de lei complementar, que não pode ser substituída por qualquer outra espécie normativa infraconstitucional, inclusive pelos atos internacionais já incorporados ao direito positivo interno [...]”

A posição do Supremo refletida pelos julgados acima colacionados, apesar de majoritária, não é unânime entre seus ministros. Interessante decisão proferiu o Min. Sepúlveda Pertence, ao julgar o RHC n° 79.785/RJ, no qual, apesar de não admitir que os tratados internacionais de direitos humanos têm hierarquia constitucional, reconheceu o status de norma supralegal desses instrumentos. Eis a transcrição da parte significativa do voto:

Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5º, § 2º, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização dos direitos humanos. Ainda sem certezas suficientemente amadurecidas, tendo assim [...] a aceitar a outorga de força supra-legal às convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas — até, se necessário, contra a lei ordinária — sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes. (apud MAZZUOLI; 2005, p. 92).

Cumpre registrar, também, os argumentos do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Mário da Silva Velloso que conclui pela materialidade constitucional dos direitos constantes dos tratados internacionais firmados pelo Brasil, a partir da interpretação do art. 5°, § 2° da Carta.

Em recente artigo publicado, Velloso (2004, p. 38-39), assim justifica sua posição:

Em votos proferidos no Supremo Tribunal Federal tenho sustentado que são três as vertentes, na Constituição da República, dos direitos e garantias: a) direitos e garantias expressos na Constituição; b) direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição; c) direitos e garantias inscritos nos tratados internacionais firmados pelo Brasil (Constituição Federal, art. 5°, §2°).

Se é certo que, na visualização dos direitos e garantias, é preciso distinguir, mediante o estudo da teoria geral dos direitos fundamentais, os direitos fundamentais materiais dos direitos fundamentais puramente formais, conforme deixei expresso em voto que proferi na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1497/DF [...] não é menos certo, entretanto, que, diante do direito fundamental material, que diz respeito à liberdade, inscrito em Tratado firmado pelo Brasil, como por exemplo, o que está expresso na Convenção de São José da Costa Rica, art. 7°, item 7, que limitou a prisão por dívida à hipótese de inadimplemento de obrigação alimentícia, força é reconhecer que se tem, em tal caso, direito fundamental com status constitucional. É dizer, o art. 7°, item 7, do citado Pacto de São José da Costa Rica, é direito fundamental em pé de igualdade com os direitos fundamentais expressos na Constituição (Constituição, art. 5°, § 2°).

Nesse caso, no caso de tratar-se de direito e garantia decorrente de tratado firmado pelo Brasil, a incorporação desse direito e garantia, ao direito interno, dá-se com status constitucional, assim com primazia sobre o direito comum. É o que deflui, claramente, do disposto no mencionado § 2° do art. 5° da Constituição da República. O Supremo Tribunal Federal, todavia, não acolheu essa tese.

Piovesan (2000, 83-84) entende que o atual posicionamento do Guardião da Constituição, firmado a partir do julgamento do RE 80.004 merece crítica no sentido da sua indiferença quanto às conseqüências do descumprimento do tratado no plano internacional, na medida em que,

[...] autoriza o Estado-parte a violar dispositivos da ordem internacional – os quais se comprometeu a cumprir de boa-fé. Esta posição afronta, ademais, o disposto pelo artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que determina não poder o Estado- parte invocar posteriormente disposições de direito interno como justificativa para o não cumprimento de tratado. Tal dispositivo reitera a importância, na esfera internacional, do princípio da boa-fé, pelo qual cabe ao Estado conferir cumprimento às disposições de tratado, com o qual livremente consentiu. Ora, se o Estado no livre e pleno exercício de sua soberania ratifica um tratado, não pode posteriormente obstar seu cumprimento. Além disso, o término de um tratado está submetido à disciplina da denúncia, ato unilateral do Estado pelo qual manifesta seu desejo de deixar de ser parte de um tratado. Vale dizer, em face do regime de direito internacional, apenas o ato da denúncia implica a retirada do Estado de determinado tratado internacional. Assim, na hipótese de inexistência do ato da denúncia, persiste a responsabilidade do Estado na ordem internacional.

A par dessas considerações, o fato é que desde o julgamento do indigitado RE n° 80.004, orienta-se a Suprema Corte pela paridade normativa dos tratados internacionais, e as leis ordinárias, estando eles, conseqüentemente, subordinados à autoridade normativa da Constituição, por ser esta a expressão máxima da soberania estatal.

Destarte, em caso de conflito entre a norma internacional e a lei interna, por situarem-se ambas no mesmo patamar hierárquico, aplica-se o princípio segundo o qual a norma anterior é revogada quando conflite com a posterior. É a aplicação do clássico princípio lex posterior derogat priori.

1.4 Os tratados internacionais de direitos humanos diante da Emenda Constitucional n° 45/04

A Emenda Constitucional n° 45, de 8 de dezembro de 2004, acrescentou o parágrafo 3° ao art. 5° da Constituição Federal, que assim ficou redigido: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.

Tendo como objetivo colocar um ponto final nas acirradas discussões doutrinárias e jurisprudenciais – conforme se demonstrou alhures –, a inclusão do referido parágrafo pretendeu estabelecer, em definitivo, qual hierarquia ocupam os tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico interno.

É de se notar que a inserção do referido parágrafo veio “constitucionalizar” a posição predominante do Supremo Tribunal Federal, pois ao afirmar que somente serão equivalentes às emendas constitucionais os tratados internacionais aprovados em ambas as Casas do Congresso Nacional, por maioria de três quintos, em dois turnos – mesmos requisitos do art. 60, § 2°, que trata do procedimento legislativo das emendas constitucionais –, determina, em interpretação a contrariu sensu, que os pactos internacionais que não forem aprovados mediante tal procedimento, mesmo versando sobre direitos humanos, terão o nível hierárquico das leis ordinárias.

Frota (2005, p. 23) e Mazzuoli (2005, p. 93) afirmam que a inspiração do legislador constitucional brasileiro talvez tenha sido o art. 79, §§ 1° e 2° da Lei Fundamental Alemã de 1949, que exige quorum de reforma constitucional, para que o tratado (sobretudo os relativos à paz, pois a Lei Fundamental não faz menção aos tratados de direitos humanos) adquira status constitucional.

Apesar da intenção, e da ilusória clareza da redação do dispositivo, aparentemente a inclusão do § 3° ao art. 5° não atingiu seu intento, persistindo entre nossos autores, os debates sobre a hierarquia dos tratados que versam sobre direitos humanos.

Rocha (2005, p. 24), por outro lado, traz argumentos interessantes ao debate, indagando sobre a real necessidade do parágrafo em análise, nos termos seguintes:

[...] ficou duvidável a necessidade desse preceito constitucional. Se se consegue o procedimento proposto no § 3°, poder-se-ia muito bem elaborar uma emenda à Constituição não servindo de argumento a via estreita dos legitimados à apresentação da emenda a justificar a votação de um tratado em vez da elaboração, discussão e votação de uma proposta de emenda.

No entanto, antes de adentrar a origem da nova controvérsia, mister tecer algumas outras considerações.

1.4.1 A aplicação da regra prevista no § 3° do art. 5° para os tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente à EC n° 45/04.

A pergunta é pertinente: poderiam os tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente à promulgação da Emenda n° 45 serem submetidos ao processo legislativo qualificado exigido pelo novo § 3° no intuito de adquirirem equivalência com as emendas constitucionais?

A resposta é afirmativa, pois dispondo de modo amplo, como o fez a inovação constitucional, não seria lícita a interpretação no sentido de limitar a regra apenas para a aprovação de futuros tratados internacionais. Conforme se depreende da simples leitura do parágrafo em análise, o legislador reformador não fez incluir qualquer ressalva no que diz respeito aos tratados internacionais de direitos humanos assumidos anteriormente à inovação constitucional.

Cumpre salientar, por outro lado, que a inovação facultou ao Congresso Nacional incorporar os tratados de direitos humanos seguindo as regras ali previstas, ou ainda, aprová-los através de decreto legislativo, como vinha sendo feito anteriormente. Trata-se, portanto, de opção discricionária do parlamento.

Nesse sentido, Moraes (2005, p. 618), ao sustentar que “a opção de incorporação dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, nos termos do art. 49, I, ou do § 3°, do art. 5°, será discricionária do Congresso Nacional”.

Não é outro o magistério de Amaral Júnior (2005, p. 39), que acrescenta a possibilidade de tratados já incorporados ao nosso ordenamento antes da Emenda n° 45 sejam novamente deliberados na forma do § 3° do art. 5° da CF:

O § 3º do artigo 5º da Constituição de 1988 faculta a recepção dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos por intermédio de uma emenda constitucional e não exclui a recepção pelo mecanismo tradicional, por meio de um decreto legislativo. Claro: nada impede que um tratado já recepcionado quando da Emenda nº 45 (a ela preexistente), seja novamente deliberado na forma do § 3º do artigo 5º, combinado com o artigo 60, ambos da Constituição de 1988 [...]

Até mesmo Mazzuoli (2005, p. 109), que continua – mesmo após a inclusão do § 3° ao art. 5° – a defender o status constitucional das normas provenientes de tratados internacionais, conforme que estudará a seguir, não exclui a possibilidade do Congresso Nacional vir a aprovar, segundo as novas regras, os tratados internacionais ratificados anteriormente à Emenda n° 45.

Diante dos argumentos, maiores dúvidas não subsistem de que o Parlamento poderá, a seu critério, aprovar os tratados internacionais de direitos humanos através de decreto legislativo (art. 49, I, CF), ou de acordo com os critérios definidos pelo § 3° do art. 5°. Da mesma forma, os tratados internacionais aprovados anteriormente poderão, novamente, passar pelo crivo do Congresso Nacional, obedecendo-se o processo previsto pela mencionada inovação, hipótese em que serão equivalentes às emendas constitucionais.

1.4.2 Qual é o momento da manifestação do Congresso Nacional nos termos do § 3° do art. 5° da Constituição Federal?

De acordo com a sistemática prevista na Constituição Federal, compete privativamente ao Presidente da República celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional (CF, art. 84, VIII). O art. 49, I, por sua vez, diz ser da competência exclusiva do Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.

Conforme visto anteriormente, este procedimento é válido para todos os pactos internacionais, sejam de direitos humanos, comerciais ou tributários, entre outros.

A pergunta que se faz é a seguinte: a aprovação do tratado pelo Parlamento seguindo a regra do § 3° do art. 5° dispensa a aprovação do pacto via decreto legislativo?

Admitindo-se que fossem os tratados aprovados por três quintos dos votos dos membros de cada uma das Casas do Congresso Nacional (havendo, portanto, a supressão da fase do art. 49, I, da Carta), estes passariam, imediatamente, a ter equivalência de emendas constitucionais, o que não se configuraria correto, porquanto para um tratado entrar em vigor é necessária a ratificação pelo Presidente da República para, só então, produzir efeitos o ordenamento jurídico interno, não se admitindo a hipótese na qual o tratado internacional de direitos humanos passe a ter feitos de emenda constitucional – e o conseqüente poder de reformar a Constituição – antes de ratificado e, muito menos, antes de ter entrado em vigor internacionalmente (MAZZUOLI; 2005, p. 100).

Deve-se, portanto, ter em mente que a missão do Congresso Nacional no processo de celebração dos tratados internacionais é referendar ou não o conteúdo deste, através de decreto legislativo. Somente depois de aprovado, repita-se, de acordo com o art. 49, I da Constituição, é que será promulgado pelo Presidente do Senado Federal, passando-se à fase seguinte que é a da ratificação pelo Chefe do Executivo, hipótese em que começará a vigorar no plano internacional. No soar destas razões, torna-se incabível a supressão da aprovação do tratado via decreto legislativo, até mesmo porque, além das considerações acima expostas, será opção discricionária do Parlamento a incorporação do tratado internacional, de acordo com a nova regra constitucional.

1.4.3 Possíveis interpretações da inovação constitucional

Conforme salientamos anteriormente, a inclusão do § 3° ao art. 5° da Carta teve por escopo findar a controvérsia existente na doutrina sobre o grau hierárquico que os tratados de direitos humanos ocupam em nosso ordenamento jurídico não atingiu seu intento, persistindo entre nossos autores os debates sobre a hierarquia dos referidos instrumentos, havendo agora quem entenda que passam a existir duas categorias de tratados que versam sobre direitos humanos.

Certamente para a doutrina que ampara a tese da paridade normativa entre tratados internacionais e as leis ordinárias, assim como para reafirmar a posição majoritária do Pretório Excelso, a inclusão do § 3° ao art. 5° da Carta Magna servirá como confirmação de seus argumentos.

Cunha Jr e Rátis (2005; p. 13) entendem que a partir da publicação da emenda constitucional n° 45, passam a existir duas categorias de tratados que versam sobre direitos humanos em nosso ordenamento jurídico, quais sejam, os tratados internacionais materialmente constitucionais, ou seja, aqueles que são materialmente constitucionais, por determinação do § 2° do art. 5° da Constituição, e aqueles que, aprovados de acordo com a nova regra, serão material e formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas constitucionais.

Mazzuoli (2005, p. 102) defende que o novo § 3° do art. 5° da Constituição em nada influi no status de norma constitucional que os tratados de direitos humanos já detêm no nosso ordenamento jurídico, por força da regra prevista no § 2° do art. 5° da Constituição. Por isso mesmo que todos os tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro antes da entrada em vigor da inovação contida na EC n° 45 não perderão a índole e o nível constitucional.

Apesar deste posicionamento, Mazzuoli (2005, p. 103) também admite a possibilidade do § 3° do art. 5° vir a ser aplicado aos tratados ratificados anteriormente, hipótese em que deixarão de ter status de norma constitucional para serem equivalentes às emendas constitucionais.

O citado autor (2005, p. 103), assim, aponta para a sutil diferença e as conseqüências entre dizer que um tratado internacional tem status de norma constitucional e dizer que eles são equivalentes às emendas constitucionais:

Falar que um tratado tem “status de norma constitucional” é o mesmo que dizer que ele integra o bloco de constitucionalidade material (e não formal) da nossa Carta Magna, o que é menos amplo que dizer que ele é “equivalente a uma emenda constitucional”, o que significa que esse mesmo tratado já integra formalmente (além de materialmente) o texto constitucional. Perceba-se que, neste último caso, o tratado assim aprovado será, além de materialmente constitucional, também formalmente constitucional.

E conclui, apontando possíveis conseqüências da incorporação das normas advindas de tratados internacionais como emendas constitucionais:

Dizer que um tratado equivale a uma emenda constitucional significa dizer que ele tem a mesma potencialidade jurídica que uma emenda. E o que faz uma emenda? Uma emenda reforma a Constituição, para melhor ou para pior. Portanto, o detalhe que passará desapercebido de todos [...] é que atribuir equivalência de emenda aos tratados internacionais de direitos humanos, às vezes, pode ser perigoso, bastando imaginar o caso em que a nossa Constituição é mais benéfica em determinada matéria que o tratado ratificado. Neste caso, seria muito mais salutar, inclusive para a maior completude do nosso sistema jurídico, se se admitisse o “status de norma constitucional” desse tratado, nos termos do § 2° do art. 5° - e, neste caso, não haveria que se falar em reforma da Constituição, sendo o problema resolvido aplicando-se o princípio da primazia da norma mais favorável ao ser humano - , do que atribuir-lhe uma equivalência de emenda constitucional, o que poderia fazer com que o intérprete aplicasse o tratado em detrimento da norma constitucional mais benéfica.

[...] significa que tais tratados não poderão ser denunciados nem mesmo com Projeto de Denúncia elaborado pelo Congresso Nacional, podendo o Presidente da República ser responsabilizado caso o denuncie (o que não ocorria à égide em que o § 2° do art. 5° encerrava sozinho o rol dos direitos e garantias fundamentais do texto constitucional brasileiro). Assim sendo, mesmo que um tratado de direitos humanos preveja expressamente a sua denúncia, esta não poderá ser realizada pelo Presidente da República unilateralmente (como é a prática brasileira atual em matéria de denúncia de tratados internacionais), e nem sequer por meio de Projeto de Denúncia elaborado pelo Congresso Nacional, uma vez que tais tratados equivalem às emendas constitucionais, que são (em matéria de direitos humanos) cláusulas pétreas do texto constitucional. (MAZZUOLI; 2005, p. 104-105)

Analisando a questão sobre outro prisma, poder-se-ia argumentar que a inclusão do § 3° ao art. 5° da Constituição, por ser obra do poder constituinte derivado reformador não poderia limitar ou restringir, como o fez, os efeitos do § 2° do mesmo artigo, incidindo, portanto, em inconstitucionalidade.

O argumento é válido e encontra respaldo nas teses doutrinárias que amparam o status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Eis que tais normas, quando ampliam direitos e garantias individuais e ingressam em nosso ordenamento jurídico, por força do disposto no § 2° do art. 5°, têm aplicação imediata, de acordo com o § 1° do mesmo artigo.

Desta forma, o constituinte reformador não poderia incluir dispositivo com intenção de limitar ou restringir a cláusula aberta do § 2° do art. 5° da Constituição, que dá amparo ao ingresso em nosso ordenamento jurídico constitucional à inserção de direitos provenientes de tratados internacionais protetivos da pessoa que, por serem considerados direitos fundamentais, estariam protegidos pelo disposto no art. 60, § 4°, IV da Constituição Federal.

Esta tese, apesar de conveniente aos defensores do caráter constitucional das normas convencionais protetivas do homem, esbarra na constatação de que o Supremo Tribunal Federal, como vimos alhures, não admite que o § 2° do art. 5° da Constituição tenha atribuído aos tratados internacionais qualquer superioridade hierárquica sobre a legislação interna ordinária.

Por outro lado, outra argumentação possível é a de que o legislador constituinte reformador, ao manifestar preocupação com o tema direitos humanos, a tal ponto de inserir o § 3° ao art. 5° revela o intento de alçar a uma hierarquia supralegal as normas provenientes de tratados internacionais. Assim, a partir da interpretação conjugada dos §§ 2° e 3° do art. 5° da Carta de 1988 poderia se entender que os tratados de direitos humanos anteriores à inovação constitucional devem ter uma hierarquia supralegal, porém infraconstitucional, tendo em vista que possuem supremacia sobre a legislação ordinária, ao passo que os tratados que, eventualmente vierem a ser aprovados, nos moldes da nova regra, serão equivalentes as emendas constitucionais.

Nesse sentido, lembre-se o posicionamento do Ministro Sepúlveda Pertence da Suprema Corte, ao julgar o Habeas corpus n° 79.785 (apud MAZZUOLI; 2005, p. 92), que, em seu voto – apesar de vencido – entendeu que seria esvaziar de conteúdo o art. 5°, § 2° da Constituição a interpretação que concluísse pela paridade normativa das leis ordinárias e dos tratados internacionais protetivos da pessoa, passando a aceitar que estes devem ter status de norma supralegal, sempre que sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias nela encartados.

Por derradeiro, o último enfoque sobre o tema é este: a inclusão do § 3° ao art. 5° do Texto Maior veio a solidificar e dar guarida ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal que, como pudemos analisar, nunca aceitou outra posição que não a de que os tratados internacionais, quaisquer que sejam, têm paridade normativa com as leis ordinárias em geral.

Nesse aspecto, é de se observar que o entendimento do STF também é pacífico no sentido de não admitir preceito constitucional fora do texto formal da Constituição. Agora esse posicionamento deverá ser revisto, na medida em que, caso aprovadas, nos termos do § 3° do art. 5°, as normas provenientes de tratados internacionais de direitos humanos serão equivalentes às emendas constitucionais, ficando, porém, no exterior do texto constitucional (ROCHA; 2005, p. 24).

Com estas considerações finalizamos a presente monografia, e passamos às conclusões.

CONCLUSÕES

A conclusão a que se chega, face ao que acima foi apresentado, é que a Constituição Federal, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como princípio norteador de toda a interpretação constitucional, aliado à previsão de que o Brasil rege-se em suas relações internacionais, entre outros, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, deixou claro a intenção do constituinte de 1988 em inserir o País no contexto da proteção aos direitos humanos fundamentais, garantindo plena eficácia a tais normas.

Diante da pesquisa realizada, uma conclusão é certa: quer seja guardando paridade com as leis ordinárias, quer seja com status de normas constitucionais, ou ainda, com hierarquia supralegal, porém infraconstitucional, as normas que versam sobre direitos humanos, provenientes de tratados internacionais ingressam em nosso ordenamento jurídico, ora inserindo ou complementando, ora especificando os direitos previstos em sede constitucional.

A vertente doutrinária que sustenta o status constitucional das normas provenientes de tratados internacionais de proteção aos direitos do homem argumenta, em linhas gerais, que estas normas ingressam em nosso ordenamento jurídico interno, por força do art. 5°, § 2° da Constituição que, como cláusula aberta, permite que a inserção de tais normas em nosso ordenamento jurídico constitucional. Por serem consideradas direitos fundamentais, tais normas têm aplicação imediata, nos exatos termos do art. 5°, § 1°, desde a ratificação do tratado. Em caso de conflito das normas convencionais e o texto da Constituição, prevalece a norma que melhor proteja os interesses da vítima.

Os defensores do status de norma ordinária dos tratados internacionais, por sua vez, argumentam no sentido de que a regra do art. 5°, § 2° da Constituição acolheu os direitos provenientes os tratados internacionais protetivos da pessoa, mas não na condição de normas constitucionais, abrigando-os em nosso ordenamento jurídico tão somente com status de normas ordinárias.

Outro argumento dos defensores desta tese é que a inclusão, em nosso ordenamento, das normas dos tratados internacionais, como normas materialmente constitucionais e, portanto, aptas a alterar o texto constitucional, corresponde a uma modificação desse texto por processo diverso daquele previsto para as emendas constitucionais, previsto no art. 60, § 2°, o que vem a descaracterizar a rigidez constitucional.

A Suprema Corte, como vimos, desde 1977 entende que os tratados, quaisquer que sejam, ingressam em nosso ordenamento jurídico guardando paridade normativa com as leis ordinárias. Tal entendimento é embasado na premissa de que a Constituição não conferiu, assim como não o fez a regra do art. 5°, § 2°, de modo explícito, primazia aos tratados internacionais sobre o direito positivo estatal. Eventual conflito entre tratados e leis infraconstitucionais é solucionado pelo critério cronológico (lex posterior derogat priori). Não há, conseqüentemente, concorrência entre norma convencional e a Constituição, cuja autoridade normativa sempre prevalece sobre os atos de direito internacional público. A supremacia da ordem constitucional sobre os tratados internacionais decorre, em última análise, da própria Constituição, que dispõe, em seu art. 102, III, “b”, competir ao Supremo Tribunal Federal, julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal.

Apesar de não admitirmos o caráter constitucional das normas provenientes de tratados internacionais protetivos da pessoa, também não consideramos correto o entendimento segundo o qual as normas convencionais ingressam em nosso ordenamento guardando paridade normativa com as leis ordinárias. Parece-nos mais correto atribuir a tais normas uma hierarquia acima das leis, porém que observasse a autoridade normativa da Constituição.

Assim, em caso de conflito entre lei interna e o direito do tratado internacional de proteção ao ser humano, aplica-se este, por ser considerado direito fundamental (ainda que não esteja previsto na Lei Maior), porém em caso de antinomia do tratado com o Texto constitucional, prevalece este, por ser inadmissível que uma norma de direito internacional possa revogar, ou afastar a incidência da Lei Fundamental, a cuja autoridade normativa deverá se subordinar.

Sem embargo dos posicionamentos que insistem no caráter constitucional das normas convencionais protetivas da pessoa, mesmo após a inclusão do § 3° ao art. 5° da Constituição, parece-nos mais adequado sustentar que a inovação constitucional, muito embora para alguns tenha restringido o alcance do § 2° do mesmo artigo e, desta forma seja inconstitucional, pois não poderia ter limitado a vontade do constituinte originário, sepultou o argumento do status constitucional dos tratados internacionais. Apesar desta visão, observe-se que o constituinte reformador não hierarquizou os diversos tratados já ratificados pelo Brasil, o que dá ensejo à interpretação segundo a qual a manifesta importância das normas convencionais autorizam o entendimento que devem se situar acima das leis, porém subordinando-se à Constituição.

Desta forma, imperiosa se faz uma mudança na interpretação constitucional dada ao tema pelos Tribunais e, em especial pelo Supremo Tribunal Federal, para acolher, com coragem, uma hermenêutica que extraia o verdadeiro significado do principio estampado no § 2° do art. 5° da Carta, conferindo a ele a força que merece, pois seria esvaziá-lo de conteúdo admitir que as normas provenientes de tratados internacionais de direitos humanos ingressam em nosso ordenamento tão somente na categoria de leis ordinárias.

As normas convencionais protetivas da pessoa, assim como os demais direitos humanos fundamentais positivados em nosso ordenamento jurídico constitucional, por serem normas que asseguram um conteúdo “mínimo” de existência digna ao cidadão devem ser dotadas de efetividade. Nesse sentido, a questão de qual hierarquia os tratados internacionais ocupam em nosso ordenamento jurídico parece perder um pouco de sua importância.

É necessário dar-se primazia ao princípio da dignidade da pessoa humana, garantindo-lhe eficácia real, possibilitando a concretização dos direitos fundamentais encartados na Constituição, assim como aqueles provenientes de tratados internacionais, mediante uma nova interpretação do verdadeiro sentido do § 2° do art. 5° da Constituição, garantindo-lhe a efetividade necessária.

Neste compasso, necessário aceitar o ensinamento de Bobbio (1992, p. 25), segundo o qual, o problema dos direitos humanos é jurídico e, em sentido mais amplo, político, e não filosófico, pois não se trata de saber quais ou quantos são esses direitos, ou qual é a sua natureza ou seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas, de outra forma, qual é o modo mais seguro para, efetivamente, garanti-los, para impedir que, apesar das declarações solenes, sejam eles continuamente violados.

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